BENEDITO FRANCO |
Meus
contos são verdadeiros, mas narro-os da maneira que os senti, vi ou ouvi no
momento do acontecido – mesmo que posteriormente contaram-me diferente.
NB.: Pode
ser distribuído para os colegas, se assim o desejar.
Juvenato
e Juniorato
061 – Coroinha
* Mamãe, muito religiosa, ia a todas as missas possíveis e impossíveis também.
Nos meus oitos anos, encaminhou-me para ser coroinha - falava em eu ser
padre. Aliás, meu irmão mais velho, o Pedro Célio, estudou no histórico Caraça,
um seminário dos Irmãos Maristas - no meio de uma grande serra de minério de
ferro, no município de Catas Altas, perto das também históricas Santa Bárbara e Barão de Cocais, MG.
Aliás, há uma ferrenha briga entre Santa Bárbara e Barão, os dois reivindicando
a posse do Caraça para seu município.
Além de proporcionar bolsas de estudos para alguns seminaristas, minha mãe ficava de olho nos padres:
Além de proporcionar bolsas de estudos para alguns seminaristas, minha mãe ficava de olho nos padres:
- Zé Franco, o padre tal está com o sapato velho, compre um
para ele. Ou:
- Zé Franco, o outro está com a batina desbotada e o paramento não está bom...
- Zé Franco... a camisa do padre...
Nas grandes festas, como a do padroeiro São Sebastião, havia os festeiros - o cargo mais importante do lugarejo. Papai e mamãe festeiros, poder-se-ia esperar festa de arromba - o dinamismo, a vivacidade e a liderança de mamãe, mais o apoio de papai, abrilhantavam quaisquer festas.
Nas grandes festas, como a do padroeiro São Sebastião, havia os festeiros - o cargo mais importante do lugarejo. Papai e mamãe festeiros, poder-se-ia esperar festa de arromba - o dinamismo, a vivacidade e a liderança de mamãe, mais o apoio de papai, abrilhantavam quaisquer festas.
Sonho maior de mamãe: um filho padre. Mais tarde realizado - o nono dos
doze filhos ordenou-se - Padre Geraldo Ildeo Franco.
O Padre Deolindo ensinou-me as respostas que o coroinha respondia durante a missa, em latim. Como é complicado decorar algo que você não entende - para dizer a verdade, nem sabia o que era o latim ou que existia outra língua que não a nossa.
O Padre Deolindo ensinou-me as respostas que o coroinha respondia durante a missa, em latim. Como é complicado decorar algo que você não entende - para dizer a verdade, nem sabia o que era o latim ou que existia outra língua que não a nossa.
É... mas acabei aprendendo e papagaiando meu latinorum todos os dias na
capelinha de Nossa Senhora Auxiliadora, do Hospital Siderúrgica, ao lado da
casa paroquial de Fabriciano, ou na capela de São Sebastião, no alto do morro,
entre a matriz de São Sebastião e a casa paroquial atuais. Ainda me lembro:
"Confiteor Deo omnipotenti..." (eu me confesso a Deus Onipotente).
Interessante que papagaiava o latinorum todo errado e no seminário, apesar de
saber bem o latim, falava as respostas da missa todas erradas, como aprendi.
Quando Dom Helvécio aparecia, arcebispo de Mariana, sede do arcebispado a que
Fabriciano pertencia, chegava em um carro especial da Estrada de Ferro Vitória
Minas - carro lindo e de luxo. Recebido pelo Dr. Joaquim, o Coronel Silvino Pereira, o
vigário e as pessoas mais importantes de lugarejo - eu olhava o carro, com toda
sua eminência e imponência, com olhos arregalados!... Mas um dia consegui
entrar naquele carro, decorado por dentro com cetim e babados, tudo branco –
fiquei extasiado! É! O Arcebispo... Sua Excelência Reverendíssima era muito
importante mesmo!... Já não se fazem mais bispos como antigamente!
Ajudava a missa
do arcebispo e depois era convidado para tomar café, na mesa, junto com ele, na
casa onde se hospedava, do Dr. Joaquim, Superintendente da Belgo Mineira na
região. Num desses cafés, presenteou-me com um seu retrato, igual ao colocado
em todas as paróquias da arquidiocese, como os do Presidente da República e do
Governador nas repartições públicas.
Dom Helvécio
idealizou, lutou e concretizou, o Parque Florestal, assim como o caminho pela
ponte velha, atravessando Fabriciano e indo para Ipatinga, passando pelo
Caladinho.
Comentava-se que Dom Helvécio recebera o título de General, conferido pelo Presidente Getúlio Vargas; tinha também um irmão bispo; faleceu em um colégio de Fabriciano, o Angélica, onde mais tarde fui professor de matemática, e onde se fez um desenho de seu perfil, riscado por uma irmã, sobre a sombra de seu rosto, na parede ao lado da cama onde morreu.
O Superintendente da Belgo Mineira era o rei da região. Rei nada... Imperador! Mandava e desmandava. Colocava-se o delegado numa ótima casa da Belgo, principalmente para resolver questões de terra - da Belgo contra os fazendeiros... Perceberam quem ganhava - é o que se comentava. Um fazendeiro me disse que defendeu, a bala, uma invasão do pessoal da Belgo, de um pedaço de terreno de uma de suas fazendas. Quando pequeno, ouvia cada barbaridade...
Comentava-se que Dom Helvécio recebera o título de General, conferido pelo Presidente Getúlio Vargas; tinha também um irmão bispo; faleceu em um colégio de Fabriciano, o Angélica, onde mais tarde fui professor de matemática, e onde se fez um desenho de seu perfil, riscado por uma irmã, sobre a sombra de seu rosto, na parede ao lado da cama onde morreu.
O Superintendente da Belgo Mineira era o rei da região. Rei nada... Imperador! Mandava e desmandava. Colocava-se o delegado numa ótima casa da Belgo, principalmente para resolver questões de terra - da Belgo contra os fazendeiros... Perceberam quem ganhava - é o que se comentava. Um fazendeiro me disse que defendeu, a bala, uma invasão do pessoal da Belgo, de um pedaço de terreno de uma de suas fazendas. Quando pequeno, ouvia cada barbaridade...
Minha mãe, orgulhosa de minhas funções
de coroinha, não me deixava ajudar a missa sem sapato - nem que fosse só com um
- até criticavam dizendo que usava um pé de sapato para poder economizar -
andando sempre descalço eu machucava muito os pés, pois gostava muito de jogar
bola, correr e brincar nos campos. Na época, todo menino andava sem sapatos - a
não ser para ir à missa - até mesmo na escola ia descalço – e como os sapatos eram
duros e desconfortáveis... Quando não eram os machucados, eram os calos...
Os meninos andávamos de calças bem curtas - hoje seria um short curtíssimo. Como coroinha, usava uma batina preta e sobrepeliz branca - os padres, de batina preta constantemente, recebiam a tonsura - uma coroinha na cabeça (raspavam, no alto da cabeça, uma roda de uns quatro a cinco centímetros de diâmetro). As missas em latim, com o padre virado para o altar e não para o povo e em jejum absoluto; as missas obrigatórias aos domingos; a comunhão dos fiéis também em jejum absoluto.
Os meninos andávamos de calças bem curtas - hoje seria um short curtíssimo. Como coroinha, usava uma batina preta e sobrepeliz branca - os padres, de batina preta constantemente, recebiam a tonsura - uma coroinha na cabeça (raspavam, no alto da cabeça, uma roda de uns quatro a cinco centímetros de diâmetro). As missas em latim, com o padre virado para o altar e não para o povo e em jejum absoluto; as missas obrigatórias aos domingos; a comunhão dos fiéis também em jejum absoluto.
Quando Fabriciano lutava para se emancipar de Antônio Dias, donde era Distrito, uma comissão de moradores ilustres fabricianenses - entre eles papai, Dr. Rubens, Dr. Albeny, Dr. Joaquim, Coronel Sylvino Pereira, Sr. Lauro Pereira, Sr. Raimundo Alves, João Bragança, Claudiano, e o vigário Padre Deolindo - foi a Belo Horizonte conversar e convencer o Secretário de Governo encarregado do caso. Expôs ele a impossibilidade de Fabriciano passar a cidade, por não haver um documento demonstrando a quantidade de moradores da área a ser emancipada - englobava os municípios de hoje:
Timóteo, Ipatinga e Fabriciano.
Toda a comissão apavorada! Mas, Padre Deolindo, nosso humilde e pacato
vigário, dirigiu-se ao Secretário:
- Um
levantamento de batizados que acabo de fazer, acho preencher a exigência; nele
constam um pouco mais pessoas do que Vossa Excelência exige. Serviria? Retirou
do bolso da batina alguns papéis embolados, desamassou-os, acertou-os e os
mostrou ao Secretário. Este leu - expectativa geral e comoveu a todos - e
bradou:
-Isto serve! Fabriciano será emancipado!
Euforia incontida!
Papai, como Juiz de Paz, assinou a Ata de Instalação do Município de Cel.
Fabriciano. Dr. Rubens foi o primeiro Prefeito. Mais tarde, papai como Juiz de
Paz assinou a elevação de Fabriciano a Comarca.
CONTINUA EM MAIS INFORMAÇÕES:
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*Como mamãe,
diariamente, ia a todas as missas possíveis e impossíveis, seu maior orgulho:
ter um filho seminarista. Seu maior sonho: ver o filho ordenar-se sacerdote –
mais tarde realizado.
À noite, mamãe reunia a
família em seu quarto para rezar o terço. Rezávamos com devoção e bem
compenetrados – a maioria deitada na cama de casal – e há coisa melhor que a
cama da mamãe?... E cabe todo mundo!
De quando em vez ela
resolvia rezar todo o rosário – três terços.
O
problema maior era quando mamãe começava a rezar três Ave-Marias e um Pai-Nosso
para cada uma das centenas de intenções – acabavam jamais! Continuava
ela firme e forte, e a gente doida para o término daquela ladainha. E por falar
em ladainha, os milhares de Santos e rogai-por-nós invocados
encompridavam ainda mais a interminável oração. Quando a maioria caía no sono,
mamãe parava. Que alívio!
Único consolo: deitar na cama dela! A cama da mamãe é uma delícia!...
*O ser coroinha, mais o
sonho e os incentivos da mamãe, a labuta diária na igreja e o contato com os
padres, levou-me a pensar em ir para o seminário.
Um dia o
sonho virou realidade.
Mamãe
preparou o enxoval.
No dia
22 de janeiro de 1950, papai e eu embarcamos na maria-fumaça, rumo a Congonhas.
Janeiro,
mês de muita chuva. Aquele janeiro chuvoso afetou, e muito, as precárias
ferrovias da Vitória Minas e da Central do Brasil, nos trechos de Fabriciano a
Nova Era e de Nova Era a Belo Horizonte. Resultado: as barreiras obrigaram-nos
a pernoitar em Nova Era, onde passei minha primeira noite em um hotel e acabei
conhecendo o primeiro arranha-céu: um pacato prédio de três andares! Em
Fabriciano havia tido um belo prédio de dois andares, estilo antigo, de
táipa-de-mão, em frente ao Hotel do Sô Cornélio, mas desmoronou-se aos poucos -
logo depois, o Coronel Silvino Pereira construiu sua imponente residência, com
dois andares.
Na
viagem de Nova Era a BH conhecemos um casal de fazendeiros que nos indicou uma
pensão onde costumavam se hospedar. Papai se arrependeu, e muito, pois a
pensão, no início da Rua da Bahia, era péssima! Só ao entardecer do dia seguinte
haveria trem para Congonhas. Aproveitamos a manhã para eu conhecer um pouco
Belo horizonte, andando de bonde por vários bairros - as ruas, quase em sua
totalidade, calçadas com paralelepípedo e, no meio delas, o poste de ferro...
Um
menino, de mais ou menos minha idade, pega uma carona no bonde, senta-se ao meu
lado e rápido trocamos algumas palavras. Naquele tempo o motorneiro conhecia a
meninada das ruas por onde passava, diminuía a velocidade e os meninos pulavam
no estribo e andavam um ou dois quarteirões, agradando e sendo agradado pelo
condutor e pelo trocador.
À tarde,
conheci o Cine Brasil – não me lembro o filme. Lembro-me como me extasiei com a
beleza do cinema e pelos carros brilhando nas ruas – suas pinturas ainda de
tinta do tipo laca, que, por seu brilho, tornavam os imensos carros bem
mais atraentes que os de hoje. As inúmeras luzes de neon das propagandas nas
ruas encantavam-me ainda mais. Aquele piscar de luzes coloridas tornava Belo
Horizonte uma cidade viva e alegre.
Tomamos
u’a maria-fumaça mais possante – não a lenha, mas a carvão mineral - na bela
estação ferroviária e admirei-me da largura dos carros – a Vitória Minas e a
Central do Brasil, em que eu andara anteriormente, eram, e são até hoje, de
bitola estreita - a BH-Congonhas é de bitola larga.
Surpresa
grande tive quando no trem encontrei aquele menino do papinho no bonde: era o
Hugo que também ia para o Seminário de Congonhas. Hugo e eu sempre fomos ótimos
colegas durante o tempo em que esteve no Seminário.
Em
Congonhas, o taxista subiu o imenso morro nos deixando ao lado do Santuário do
Senhor do Bom Jesus, no bom Hotel Colonial.
No dia
25 de janeiro, festa de São Paulo, entrei para o Seminário São Clemente Maria,
dos Padres Redentoristas, em Congonhas, MG. Neste ano de 2009, a Congregação
Redentorista comemora o centenário da canonização de São Clemente Maria
Hofbauer, considerado o seu segundo fundador.
Mamãe
gostava que a gente usasse calças bem curtas. No Seminário, os novos colegas
olharam espantados e o Diretor me mandou trocar de roupa, vestindo uma calça
comprida! Minhas roupas eram marcadas com o número 47. Até os calções batiam
abaixo dos joelhos, mais compridos que os de hoje, e ainda se usava camiseta
até para nadar e tomar banho!
Para os
primeiros dias, a gente ganhava um anjo-da-guarda – um colega mais velho
que nos ensinava todo o regulamento do internato. O Dagoberto, de Ferros, foi o
meu anjo-da-guarda.
Alguns
dias depois, o Diretor, na capela, falou os nomes dos novos seminaristas.
Deu-me um ataque de riso quando escutei o nome do colega do bonde: Hugo Roberto
Tocafundo!
BF
280408
*Quando
ainda criança, doze anos, meu pai me levou para o internato dos Padres
Redentoristas em Congonhas, MG, dirigido por padres holandeses - o
Diretor e alguns professores.
Costumes hoje
inconcebíveis:
Calções
e camisetas usados obrigatoriamente para tomar banho normal de chuveiro -
abolidos um ou dois anos antes de eu entrar. Nadávamos de calção longo,
abaixo dos joelhos, e camiseta. Camiseta abolida meses depois e o calção chegou
ao tamanho normal, para a época, um ou dois anos após minha chegada, com a
tomada das rédeas da direção por padres brasileiros - entre eles o Padre
Alberto Ferreira Lima que modernizou quase tudo. Natação é coisa
pouco comum em Congonhas por causa do clima, talvez três a cinco
meses durante o ano, apesar de hoje haver grande parque público, da Prefeitura,
Parque da Cachoeira, perto da cidade, aberto de terça a domingo - com
uma vistosa e bela cachoeira e mais de vinte piscinas.
Quando cheguei, banho
obrigatório aos sábados. Jogávamos futebol, em campo de terra e muita
poeira, todas as terças e quintas - o banho não exigido para quem
jogasse, mas os padres brasileiros começaram a obrigar os participantes.
Calculem a quantidade de chulé de cada jovem em idade propícia - as meias de
algodão usadas durante uma semana endureciam nos pés - a de nylon ainda
inexistia - e como a de algodão caía sobre o sapato, usava-se a liga para
segurá-la. No dormitório, quase duzentas camas uma ao lado da outra, e os
alunos tirando sapatos e meias ao mesmo tempo. Trocávamos de roupa aos sábados.
Os suspensórios faziam parte do enxoval.
Holandês não
toma banho - talvez uns três a cinco por ano. Na França, o governo incentiva o
uso de chuveiro, pois muitas casas e prédios não têm - é por isso que o francês
inventou tanto perfume. Minha irmã Celma especializou-se em hematologia e
bacteriologia na Bélgica, onde ficou conhecida na grande Universidade
Livre de Bruxelas, por ser a moça que toma banho. Uma senhora, doméstica
na casa de um padre holandês, contou-me que, apesar de o padre tomar banho de
três em três meses, a roupa não fedia mais que a nossa - trocava
normalmente como nós - mas, parece-me, por causa do clima, os holandeses
transpiram menos.
Éramos
divididos em três turmas: menores, os do preliminar e primeira série; os
médios, das segunda e terceira séries, e dos maiores, das quarta, quinta e
sexta séries. Só se podia falar, brincar ou andar junto com colega de turma -
tudo separado para cada turma, tanto nos recreios como nos esportes. Nunca
se podia conversar com apenas um colega - era a proibida amizade particular - andar
sempre com dois ou mais.
Havia muita
coisa boa também.
Comida farta
e ótima. Tudo servido no prato tinha que ser comido – nada podia sobrar –
e havia um mínimo a ser servido. No jantar uma sopa antes do prato principal e
todos tinham que comer pelo menos um pouco de sopa. Havia um menino de Acesita
que detestava sopa – ficava ele no refeitório depois de todos acabarem de comer
até terminar o recreio, para forçá-lo a comer a bendita sopa. Eu sempre gostei
de sopa. Esse menino acabou saindo do seminário por causa da sopa. Foi o único
senão que achei no seminário – eu, menino, achava uma covardia o que se fazia
com ele – mas era julgamento de menino; os Padres tinham suas razões e a mim
não me cabia discuti-las. Conversei com pessoas que estudaram em internatos, em
nenhum deles havia tanta fartura e conforto. Fabricavam cerveja, distribuída
para nós nos dias de festas - achava um gosto horrível. Fora do internato,
permitia-se fumar. Na época - talvez hoje não seja assim - na Holanda
havia uma festa familiar para os rapazes que completavam quinze anos, debutavam,
quando recebiam permissão e começavam a fumar e a beber cerveja -
presentes de variados tipos de cigarros, charutos e cervejas - até mesmo
no seminário. Parece-me que as moças ficavam sem a festa de quinze anos.
Na minha
terra, Fabriciano, conhecia tomate do grande e o tomate do mato - tomatinho. Em
Congonhas, conheci o tomate comum. Após as refeições, servia-se uma sobremesa -
podia ser um pouco de doce ou uma fruta. Um dia serviram uma fruta de aparência
igual ao recém descoberto tomate - não comi, estranhando dar tomate
como sobremesa. Depois me explicaram ser caqui - também desconhecido por mim.
Fabriciano faz muito calor e não se planta caqui - não pega. Ainda não havia o
Ceasa, que distribui alimento para todo o Estado.
Acordávamos bem cedo, íamos à missa, quinze minutos de ginástica e depois o
farto café. Às 9.30h e às14.30 serviam uma fruta. Antes da oração da noite,
biscoitos ou o Koock, um delicioso pão de mel holandês.
Nada nos
faltava, mesmo para os menos dotados de bens - realmente iguais... mas não
havia preto, negro mesmo, estudando
lá.
Professores,
uma plêiade de padres, dando o máximo de si. No início o Diretor era o holandês
Padre Gregório, substituído pelo Padre Marcos Gabiroba, vindo a seguir o Padre
Alberto Ferreira Lima. Os professores padres Barbosa, Neves, Geraldo Lima,
Borges, Marcio, Marques, Leite, Penido, o futuro Bispo Dom Lelis Lara e os
holandeses Walter, Henrique e Inácio e o polivalente Padre Anselmo.
Estudávamos nove
horas às segundas, quartas e sextas; seis às terças, quintas e sábados;
quatro aos domingos.
Aulas de
latim diariamente, com professores diferentes para cada turma
- o professor de latim era o patrono da turma. Mais de doze horas de
latim por semana. Quando quisesse ou precisasse de algo para a turma,
recorria-se ao patrono, que se interessava em conseguir.
Para cada
aula, meia hora de preparação e igual tempo para o exercício sobre ela -
uma hora para o latim, inclusive aos domingos. Meia hora de estudo livre,
diariamente, quando líamos ou recuperávamos alguma matéria na qual se ia mal.
Aos domingos, uma hora de estudo livre acompanhado de música clássica, aliás,
só escutávamos música clássica. Quando entrei, nos dois primeiros anos,
usava-se a vitrola de agulha, substituída a cada cinco a dez discos tocados!
Depois apareceu a radiola com som estereofônico - uma coisa doutro mundo!
Assistíamos
missa diariamente - duas aos domingos, uma delas cantada. Durante um bom período
fui sacristão. Todos nós tínhamos algumas profissões, conforme seus dotes.
Sempre fui desenhista e, durante algum tempo, organista e até regente do coro e
da bandinha, além de trabalhar no museu, pegando e embalsamando animais. Antes
do almoço aos domingos, cantávamos os salmos – uma música de uma nota só.
No harmônio eu acompanhava os colegas cantando. De quando em vez eu subia meio
tom e a turma gostava, pois quanto mais alto o tom, mais rápido se cantava e
mais rápido aquela inacabável oração terminava – quando isso acontecia dos
meios tons subirem mais vezes, o Diretor, de seu quarto, escutava aquela
barulheira e vinha correndo para me chamar a atenção!
E por falar
em aprender, uma vez, num sermão, o Padre Marcos, diretor, falou que a
Igreja Católica é formada por uma plêiade de pessoas doutas e sábias.
Achei linda a palavra plêiade! No mesmo sermão usou paulatinamente
- maravilhei-me com as duas palavras! - tinha uns treze anos.
Durante as
horas de estudo, alguns tinham aula de piano, harmônio ou violino, normalmente
uma vez por semana e duas vezes de prática nesses instrumentos -
tempo compensado no estudo livre. Aprendi harmônio - um pequeno
órgão. Os instrumentos da banda eram aprendidos e treinados durante os
recreios, por causa do barulho - os ensaios da banda também nos recreios.
Tocava saxofone em mi bemol, mas gostava de tocar os outros instrumentos
também, mas nunca fui muito bom em nenhum deles.
Tínhamos
um coral maravilhoso - cantávamos a quatro vozes e mais um coral especial, o de
Canto Gregoriano - Schola Cantorum - pertencia aos dois.
Praticávamos
muito os esportes: vôlei, basquete e futebol - havia vários campos.
Participava de todos eles. Gabo-me pouco do aprendido até aqui, mas... era
muito bom no futebol... fui até convidado para jogar no super time
do Vasco da Gama do Rio - convite feito pelo técnico Gentil Cardoso -
quando saí do internato.
Festas
comemoradas com apresentações de poesias, de piano, a duas e a quatro mãos, e
violino ou de um dos coros, discursos sobre o assunto - além de peças teatrais.
Nunca falei em público.
Muitos
passeios às serras que circundam Congonhas - Casa de Pedra, Serra da
Moeda, Morro dos Elefantes e Pico do Itabirito - todos de minério de
ferro. Nas férias, na Casa de Campo, subíamos a Serra de Ouro Branco
ou íamos às grutas atrás da serra (Grutas do Rodeio) - tão lindas como as
da Lapinha ou Maquiné. Hoje o povo não pode visitá-las... Estão em mãos de
firmas mineradoras - acabarão dinamitadas e desmanchadas para uso na
agricultura ou indústria.
Em certas
épocas do ano íamos chupar laranja ou jabuticaba nas fazendas do Sr Juventino
ou na do Sr. João Batista. Apanhávamos as frutas nos pés e depois íamos nos
regalar com um lauto café com leite acompanhado de broas e biscoitos típicos da
roça - que fartura!
Normalmente
passeios a pé e, quando longe, íamos de caminhão até onde havia estrada -
estrada de terra.
Três férias
ao ano. Três semanas em maio e em setembro e a última iniciando depois do dia
vinte de dezembro ao final de janeiro, passadas na Casa de Campo aos pés
da Serra de Ouro Branco. Em casa dos pais nunca íamos - fiquei oito anos sem
ver a maioria dos irmãos.
Durante as
refeições, um aluno lia, em voz alta, livros de vidas dos santos ou algum outro
de interesse geral. Muitas vezes a leitura era rápida e podíamos conversar um
pouco. Depois da terceira série, às quintas-feiras, não se falava
português - praticávamos o latim, inglês, francês ou até mesmo o grego
- também brincávamos com as línguas do "P" e do "F".
Estudei
durante quase oito anos em Congonhas.
Como o
mundo mudou nos últimos cinquenta anos!... Foi para melhor?...
*O Juniorato - em
Congonhas, MG – foi inaugurado no final de 1952 – a primeira pedra foi lançada
no dia 02 de agosto de 1950 e a benção solene do edifício no dia 02 de outubro
de 1952.
Ainda havia o admissão,
uma preparação de um ano para o menino que saía do primário e desejava
ingressar no primeiro ano do curso ginasial.
No Juvenato, os alunos
eram divididos em menores, os do admissão e primeiro ano; os médios, os do
segundo e terceiro anos e os maiores, os do quarto, quinto e sexto anos.
Nesse mesmo fim de ano,
de 1952, os meninos que cursavam o primeiro ano e o admissão, os menores, foram
transferidos do Juvenato para o Juniorato – e lá fui eu. O diretor do novo
seminário foi o P. Alberto Ferreira Lima – o Padre Lima. Os professores,
lembro-me do Padre Walter, holandês, acho que também os Padres Geraldo Lima e
Marques. O diretor do Juvenato era o holandês P. Gregório, posteriormente
substituído pelo P. Marcos Gabiroba e, este indo para o Peru, nomeou-se o P.
Lima. Padre Marcos não me era muito simpático – nem eu a ele, e muito menos ele
a mim. Na minha análise de criança, achava-o muito político – amigo do JK – e
um pouco burrinho.
No Juniorato, José
Geraldo Campos era o “chefe” e eu o “subchefe” – aquele que puxava as filas e
tomava a frente em algumas outras funções.
Em frente ao Juniorato
há a imponente igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição. Ao lado, no terreno
do Juniorato, havia um grande pátio que servia de campo de futebol e outros
esportes. Nossos vizinhos mais próximos, silenciosos e quietos, eram os
moradores do cemitério, separados apenas por um muro em um dos lados, com
várias sepulturas em péssimo estado, dando para ver alguns de seus ossos e
algumas caveiras. À noite, na distração dos padres diretor ou sócio, devido à
facilidade de acesso, alguns alunos disputavam quem teria coragem de visitar os
vizinhos e trazer, e devolver, um osso ou uma caveira - parece impossível, mas
aconteceu de alguém cumprir a empreitada.
As férias dos
junioristas eram em tempos diferentes das dos juvenistas, pois assim todos eles
desfrutavam dos ares e aposentos da Casa de Campo. Três eram as férias do
Juvenato: quinze dias em maio, quinze dias em setembro – logo após o Jubileu –
e a terceira, de meados de dezembro ao final de janeiro. Os junioristas também
tinham três ferias.
Como o Juniorato foi
inaugurado no final do ano, nossa estadia por lá, os do primeiro ano, durou
apenas alguns meses, sendo transferidos para o Juvenato no início do ano
seguinte.
Portanto, passei apenas
alguns meses no Juniorato.
Foi uma bela
experiência.
21052015
*Estudávamos num colégio interno, dos Padres
Redentoristas, em Congonhas.
Naquele dia de São Marcos, 25 de abril, uma
surpresa: um passeio ao Pico do Itabirito - 1.586 metros de altitude e a 20 km
da cidade de Itabirito, MG. Adorado pelos povos primitivos da região, pela pompa
tornou-se o Monte Sagrado. Inspirava a presença de deuses, fazendo a idolatria
de indígenas que se reuniam em torno da enorme pedra, constituída de pura
hematita (Do Gr. haîma, atos = sangue + Do Tupi ita = pedra) Pedra de
Sangue. O Pico é tombado pelo Patrimônio Natural Estadual, mas, para
visitá-lo, é necessário autorização da MBR. Apesar do tombamento, está sendo
desmontado por essa mineradora, nem sempre com espírito de conservação da
natureza ou espírito nacionalista - e os itabiritenses deixam!... Vai acontecer
o que aconteceu com os itabiritanos: perderam o Pico Cauê - a Vale do Rio Doce
o desmontou!
Um dia os itabiritenses só verão o Pico do
Itabirito nas antigas fotografias, no brasão da cidade ou em sua bandeira!
Acordem!
Quando quiserem ver horrendos crimes ambientais,
passem pela estrada de Mariana a Catas Altas, ou de Congonhas a Belo Vale –
nossa imprensa se cala! A Vale deixa as serras e vales valendo nada!... e ainda
se diz cada vez mais verde e amarela!... talvez vermelha, azul e branca
demais...
As mochilas preparadas e os caminhões, com tábuas
atravessadas nas carrocerias, serviam de bancos, esperando-nos. Os
chauffeurs, o Sô Geraldo e o Barbosa, bons profissionais, apesar dos caminhões
de marcha seca e dura e da estrada de terra, cascalhada com pedra de
minério de ferro. Não havia ônibus.
Entramos na antiga estrada de terra vermelha, rumo
ao Pires, e daí seguimos pela BR 040, com promessa de ser asfaltada em breve.
O Viaduto das Almas pronto - à época, uma das Sete Maravilhas do
mundo, pelo menos para nós - conhecíamos apenas pontes de
madeira. Mais ou menos na hoje entrada para Moeda, seguimos à direita
até o pé do Pico do Itabirito.
Viagem agradável, apesar dos trancos e solavancos
dos caminhões - ou trancos e barrancos, como dizíamos - estávamos acostumados.
Cantávamos em coro e conseguíamos até
cantar músicas executadas pelo nosso coro, a duas, três ou
mesmo a quatro vozes – “Luar do sertão”, “Va, pensiero...”,
“Tantum ergo” e outras muitas. Coro
ótimo - fui organista durante algum tempo, chegando a regê-lo
e à pequena banda de música do colégio.
Nunca fui um grande músico - um músico razoável que
gostava de experimentar todos os instrumentos da bandinha - a furiosa!
- e adorava o órgão - nem era órgão e, sim, um harmônio - mas, era chamado
de organista. O harmônio é um pequeno órgão, cujo fole é tocado com os próprios
pés do organista - os órgãos de hoje são eletrônicos e não possuem aquele som
maravilhoso do órgão original.
Chegando ao monte, gigante de minério de ferro,
despontando num planalto, talvez da altura do Pão de Açúcar, montávamos
acampamento a seus pés. É lindo contemplá-lo de perto, debaixo de suas
barbas - dá mesmo a sensação de sua grandeza e da grandeza de Quem o fez.
Os colegas cozinheiros permaneciam nos seus pés para
preparar a comida - iam prontos: o arroz, o feijão, tomate inteiro, picado na
hora, farofa e carne em forma de almôndega ou cozida. Levávamos os
talheres, pratos e canecas de alumínio - ainda não existiam os de
plástico.
Cada um tinha seu cantil com água e um casquete
para se proteger do sol – hoje são os bonés.
Começava a subida, pela parte traseira, em fila
indiana, e o chefe à frente.
Sempre apressado e afoito para essas
coisas, procurava ir à frente, inclusive conversando com o chefe -
assim chamado o colega mais velho que puxava a fila - mais experiente e, assim,
andando, observando e tomando conhecimento de coisas novas. Normalmente, é
bom aproveitar a oportunidade e descobrir que mais e mais todos nós
temos coisas a aprender.
Cada vez mais íngreme o caminho, despontando um
horizonte de cinema. Num certo trecho, a trilha bifurcava. O
chefe por uma, alguns poucos colegas e eu por outra. Resultado: saímos
bem à frente do chefe e seus seguidores. Jovens e afoitos, com a
satisfação de estarmos à frente de todos, resolvemos apressar os passos,
morro a cima - para não nos perdermos era só olhar para o alto e
seguirmos; aliás, não tinha como se perder, só subir e subir, chegava-se
ao cimo do monte.
Encimando o Pico do Itabirito, duas pontas, cá de
baixo parecem pequenas - são morros altos. Num raio de 50 km, ou mais, vê-se
puro minério de ferro. Passando pela BR 040,
Rio-Brasília, observam-se as pontas e o minério da região.
Chegando ao alto, antes de todos, parti para uma
das pontas, a maior das duas. Uma vista maravilhosa, dando a impressão
de perceber até a curvatura da terra. Em baixo, a fila indiana, com mais
de 150 colegas e, no final, talvez ainda no meio do caminho, o Padre Diretor -
Padre Marcos Gabiroba.
Dei um assobio; não sou muito bom nisso, mas saiu
às mil maravilhas. Com o eco da serra, o Padre Diretor escutou - pude
perceber, olhou para o alto.
Apesar de longe, alguém deve ter falado para ele
que era eu. Determinou, ordem imperativa mesmo, e o pessoal foi gritando morro
a cima:
- Benedito, fique de joelhos aí, com os braços
abertos, até que eu chegue!
Gente, como meus joelhos doeram!...
*Pelos quinze anos, passava
férias na Casa de Campo...
Casa de Campo, onde os
internos passávamos as férias, quando estudávamos em um internato em
Congonhas, MG – Juvenato São Clemente Maria, dos Padres Redentoristas.
Estudávamos de oito a nove horas por
dia. Três semanas de férias em maio e em setembro; após o dia vinte de
dezembro ao final de janeiro, também íamos para a Casa de Campo, aos pés da
Serra de Ouro Branco – caminhávamos a pé, umas três léguas, distância calculada
pelos colegas da roça. Não passávamos férias nas casas de nossos pais.
Arrumávamos as trouxas – iam de caminhão – colocando as roupas necessárias para
todas as férias – roupas diárias iam semanalmente.
Havia dois campos de futebol, dois de
vôlei e duas piscinas. Instalações simples e a comida ótima e farta. Um
salão que servia de refeitório e sala de recreio e uma capela onde
assistíamos à missa diariamente. Nunca fui bom nadador, mas aproveitava, e
muito, os outros esportes.
Nessas ocasiões passeávamos subindo a
Serra de Ouro Branco, acampando durante o dia. Lá em cima, além da maravilhosa
paisagem e vista quase a perder de vista, chapadões, onde imperam
– imperavam! – as canelas de ema, e um córrego, assim como uma linda e
perigosa cachoeira na parte de trás.
Nos terrenos da Casa de Campo passava
um ribeirão, cuja nascente é exatamente a do córrego de cima da serra. Esse
córrego, um pouco antes da Casa de Campo, atravessava um sulco profundo, talvez
de vinte a quarenta metros, cavado por ele entre as pedras de calcário
existentes por lá – nós o chamávamos de garganta ou funil; atravessá-lo
era um bom desafio e um agradável e longo passeio, quiçá uns quinhentos metros
de pedras desalinhadas e forte correnteza da água, além do frio. Maravilhoso!
Tudo isso, atualmente, fica debaixo d'água da represa construída pela
metalúrgica Açominas para captação de água industrial e potável.
Um dos passeios preferidos era nas
grutas atrás da serra – interessantíssimas, grandes e lindas, com os
maravilhosos salões coloniais, decorados com estalactites e
estalagmites de diversos tamanhos e formas – não perdem em beleza e
tamanho para a gruta de Maquiné ou Lapinha. As companhias, donas do
local, fecharam os caminhos das grutas, com a anuência e tolerância da
Prefeitura local – Ouro Branco ou Ouro Preto. Proíbe-se o povo de
desfrutar as belezas de um bem público – como retiram calcário do local, é bem
provável, se nenhuma providência for tomada, que aconteça o que tem acontecido
com muitas delas nas nossas minas gerais: virarão pó, para a agricultura ou
para a siderurgia!
Numa das férias, acometeu-me uma
terrível dor de dentes. A bochecha inchou, inflamada. Tendo aparecido um carro,
coisa rara naquele tempo, deixaram-me ir para Seminário, em Congonhas,
procurar um dentista – dentista prático, o que havia. Fiquei só, no imenso
internato, pois seria atendido somente no dia seguinte.
O dormitório, no extremo esquerdo
do segundo andar. Eu, naquele mundão. A luz elétrica, em dias
alternados para cada lado da cidade. Nada de luz naquele dia, ou melhor,
naquela noite.
Achei alguma vela e resolvi dormir na
enfermaria, mais aconchegante – no extremo direito do primeiro andar.
Deitei-me. Difícil dormir com a
dor e, quando enfim o sono chegava, percebi algum vidro de uma das
janelas quebrando ou sendo quebrado. Pensei logo num ladrão. Mas ladrão
para roubar o que naquele lugar? Bons tempos, quando ladrão era coisa
raríssima.
Quase todo o prédio era de piso de
madeira. Percebi passos ao longe. Poder-se-ia adivinhar mais
ou menos onde. Talvez alguém no dormitório... Encontrava-me só, tinha certeza –
dor, sono, cansaço, escuridão e solidão inventam coisas...
Nunca tive medo de nada, e, apesar da
dor e das noites mal dormidas ou mesmo passadas em claro, dormi.
Pelas tantas da noite acordei assustado
com barulho de passos no andar de cima. Estranhei, pois afinal pensava estar só
no prédio.
Alguém vinha em direção ao
lado direito do edifício – para o meu lado. Ouvi cada passo, descendo a
escada. Parava... descia... e foi aproximando-se... aproximando-se... até
chegar perto do corredor principal.
Com medo ou receio e a escuridão
total, deu para ver, através da fresta da porta, alguma luz vindo – nessas
horas, dois lumens viram dois mil! Cobri-me todo. Eu ofegante e a luz
mais perto, os passos também. E a luz aumentava. Lentamente, caminhou todo
o corredor principal. Entrou no pequeno corredor da enfermaria. Foi chegando...
pelo caminhar, alguém avizinha-se da porta... pegou no trinco
torcendo-o... devagarzinho... e eu meio suado – meio suado que nada, todo
suado... e suor frio!
Lentamente abriu-se a porta. Dei uma
olhadela e... o que vejo? – uma assombração com seu lençol alvíssimo e um
lampião a vela numa das mãos! Pude comprovar que lençol de assombração é
realmente branco, branquíssimo, e meio transparente!
Enrolei-me todo no cobertor...
encolhi-me o máximo. Fazia frio, e eu mais frio ainda, e ele
aproximando-se da cama... Alguns segundos viram horas. Eu na posição fetal...
Cutucou-me! Gelei-me. E murmurando:
- Sa-be on-de tem mais co-ber-tor?... (acho que com mais medo que eu!)
Demorei-me um pouco a entrar na
realidade.
Que alívio! O Gentil, um colega,
enrolado num lençol, por causa do frio. Tinha vindo depois de mim, chegou à
noite e, como não possuía chaves, quebrou uma vidraça, de uma das muitas
janelas, e entrou.
Acabamos dormindo, os dois, na
enfermaria.
Naquela noite, além de terrível,
terminei dormindo com uma assombração!
E o lençol não era branco!... E
nem lençol!... Era um cobertor xadrez!... E xadrez escuro!...
Medo faz coisas! Acreditem!
*Em Congonhas, MG, os estudantes passávamos as férias numa Casa de Campo, aos
pés da Serra de Ouro Branco, um paredão colossal de pedra - emoldura um
dos lados da cidade de Ouro Branco.
Dois padres acompanhavam-nos: o
Padre Diretor ou o Padre Sócio, tipo vice-diretor, responsável direto pelos
internos, e um professor - companhia para o padre e para nós, alunos.
O professor que mais gostávamos que nos acompanhasse, um holandês
simpaticíssimo, magro e alto, muito branco, com um bom português. Regente dos
coros, o diretor do teatro - além de dirigir as peças, mostrava-se um
grande artista, pintava os cenários - ajudava-o. Meu professor de desenho
e pintura. Chamava-me de O Egípcio, por eu gostar de desenhar e pintar
telas grandes. Era o Padre Anselmo.
Praticávamos esportes os mais diversos.
Futebol, vôlei e basquete, os que mais apreciava. Nas piscinas nadávamos quase
o dia inteiro, mas nunca fui grande amante de natação e muito
menos exímio nadador - muito frio por lá.
Passeávamos pelos matos da
redondeza à procura de gabiroba e cabacinha, assim como de outras
frutas do mato - nas férias de fim de ano essas frutas eram normais e fartas.
Arrancávamos o pacheco (ou jucatupé, ou ainda jacatupé, ou
até mandioca doce, como o chamam alguns); raiz de um pequeno arbusto bem
diferente do pé de mandioca, mas de raiz bem parecida - muito apreciada por
nós. Pegavam-se os animais encontrados - cobras, rãs
( jias), aranhas, jaratataca, tatus etc.. Os venenosos enviados para
o Butantã em São Paulo. Alguns - rãs, tiús, gambás e tatus - consumidos e
outros embalsamados para o pequeno museu. Nem todo aluno poderia pegar
um animal encontrado - só alguns autorizados, eu entre eles.
Ao entardecer, acionava-se um pequeno
motor a gasolina, funcionando com seu barulho característico, até o Padre dar o
último sinal com a campainha, para dormirmos; ainda hoje me vem à memória
aquele bater dos pistões do pequeno motor.
Após o jantar, luz fraca, e só na casa. A
varanda e o refeitório serviam de sala de recreio, onde jogávamos baralho
e contávamos nossas histórias e estórias diárias e as saudosas de nossas casas
e famílias - contávamos nossas potocas (conversas fiadas). Os que comeram
farinha, ou iriam comer, era um assunto comentado à surdina (comer
farinha é o mesmo que sair ou ser mandado embora do seminário).
Praticávamos alguns jogos, como o quebra-cabeça, a dama e o xadrez - havia até
mesmo um bilhar – com bolas de marfim.
Rodeávamos o professor, misto de contador de histórias e companheiro naquela
solidão. No lusco-fusco das lâmpadas e na escuridão total lá fora, quebrada
apenas pelas luzes dos vaga-lumes e sonorizada pelos cricris de grilos vários e
os incontáveis e variados coaxares de sapos e rãs – com sua orquestra harmônica
quebravam a monotonia.
Contato com a
civilização uma ou duas vezes por semana, quando por lá aparecia um carro. O
caminhão do seminário ia uma vez por semana, para levar os gêneros
alimentícios, roupas limpas, ou algo necessário, e apanhar as roupas sujas.
Padre Anselmo descrevia-nos os anos passados no seminário na Holanda, situado à
beira de uma importante rodovia, justo no período da Segunda Guerra Mundial.
Meninos e jovens arrepiávamos os cabelos e arregalávamos os olhos diante da
real e dramática descrição de dias e anos daquela guerra terrível - ouvíamos
ávidos, sentindo calafrios.
Os que declaram, administram e
comandam as guerras ficam em confortáveis gabinetes em seus países - no
final, os heróis. Na verdade, os heróis ao longe: o povo morrendo
nos combates ou em suas conseqüências. A história, uma fábula, ou, um relato
tendencioso, sobre a qual poucos discordam.
O jovem seminarista Anselmo, magérrimo,
depois de anos passando fome e sede, foi comunicado que a mãe estava
prestes a falecer, no norte da Holanda. Desejava visitar a mãe. Os superiores
arranjaram-lhe um passaporte - uma licença especial para viajar até onde
se encontrava a mãe. Muito magro, magreza acentuada por ser muito alto.
Imaginem-no durante a guerra, quando nem sempre tinha o que comer! Pois bem, ao
chegar ao norte, todo mundo, admirado, olhava-o. Perguntou a um parente o
porquê de tamanho assombro. Recebeu a explicação:- Você está muito gordo
para nossos padrões atuais: somos um povo faminto e esquelético.
As árvores sem folhas e casca,
arrancaram-se até mesmo capim e grama - serviram de alimento para o povo.
Ratos, baratas, e todo e quaisquer insetos, disputados e comidos. Uma
paisagem dantesca - desoladora e aterrorizadora... um deserto de terra úmida,
esqueletos de árvores e de gente!
Um irmão do Padre Anselmo, perseguido
pelos alemães, correu daqui, correu dali, entrou em um galpão, cheio de
máquinas e alimentos - um antigo armazém. Encontrou um barril. Abriu-o. Pulou
dentro e, imediatamente, puxou a tampa para encobri-lo... O barril, um depósito
de ovos, com ovos pela metade. Só que... antigos e totalmente podres!
Imaginem todos aqueles ovos podres e
quebrados por ele... e ele lá dentro sem poder abrir o barril. Os
perseguidores, sentindo o odor, passaram rápido pelo local.
Preferiu o terrível cheiro,
a ser morto pelos alemães.
Nunca tantos ovos lhe fizeram tão
bem!... E podres!
O mesmo irmão do Padre Anselmo foi ao campo de batalha. Ferido, caiu
numa poça de sangue, ao lado de um soldado que acabara de falecer, de
quem ainda escorria sangue.
Chegou um soldado alemão, costume durante
a guerra, para o tiro de misericórdia - um tiro em cada um dos mais
feridos para que não sofressem muito, pois o socorro pouco e mal. O soldado
olhava para o ferido, uma cutucada com a ponta da baioneta, e um bom
ferimento. Se mexesse, sinal de vivo - tomava um tiro na cabeça.
Se inerte, economizava-se o tiro.
Baioneta é uma arma branca que se adapta à
boca de um fuzil ou mosquetão.
O irmão ferido, mas nem tanto,
quando percebeu a aproximação do soldado alemão, fez-se de
morto. A baioneta enfiada em um dos joelhos, quase lhe arranca a rótula.
Retesou os músculos, controlou o gemido e o grito de dor -
dor é sentida quando se tem a sensação de dor - não a tendo, ou se esforçando
para não tê-la... O alemão, na pressa de acabar logo o serviço, no campo de
batalha muitos feridos, passou para outro, pensando que aquele cliente
realmente morrera.
Interessante que os alemães e, posteriormente os americanos, respeitavam muito
o seminário e os seminaristas. De quando em vez os alemães faziam buscas totais
pelo colégio, onde, muitas vezes, era possível proteger alguém que se escondia,
principalmente judeus.
Quando os americanos entraram na Holanda
avisaram aos holandeses para se abster de se manifestar, pois os inimigos
fariam o mesmo, disfarçando-se e, com isso, poderiam atacá-los.
Em frente ao seminário havia um senhor,
fazendeiro, muito amigo dos seminaristas. Estes, do interior do prédio,
olhavam pelos vidros das janelas, observando os americanos e os tanques
passarem. Apareceu o fazendeiro na varanda superior da casa e começou a
pular com os braços abertos, externando toda a alegria pela presença dos
americanos, antevendo o fim próximo da guerra. Um tanque americano
virou-se em sua direção, disparando sobre ele e a linda casa um tremendo
tiro de canhão - ele sumiu no enorme buraco que a bala fez na casa, quase
a destruindo por completo.
Tiveram pouca coisa para enterrar do pobre
e inocente fazendeiro.
Na guerra... quem é o mocinho e quem é o
bandido?... O povo é o sofredor.
Isso é a guerra, tão bem narrada e dramatizada pelo inesquecível Padre
Anselmo...
*Quando fui para o
Seminário, Juvenato, de Congonhas, alguns meses depois, tivemos uma aula de
matemática - versava sobre regra de três. Para demonstrá-la na prática, fomos
para a frente do Santuário do Senhor do Bom Jesus, para medirmos as alturas das
palmeiras lá existentes – quando o Padre Professor nos disse que iríamos medir
a altura das palmeiras, não acreditei. Medimos o comprimento da sombra de um
metro. Medimos o comprimento da sombra da palmeira. Descobrimos então as duas
medidas das sombras, mais o metro, e com essas três medidas montávamos uma
regra de três: o resultado era a altura da palmeira. Achei interessantíssimo!
Nessa
ocasião conheci as sessenta e quatro imagens dos Passos, em cedro, pintadas
pelo Athayde, e os doze Profetas, em pedra sabão - todas as peças esculpidas
pelo Aleijadinho. Vários colegas riscavam seus nomes nas estátuas de pedra
sabão – nunca o fiz, embora sentisse que se dava pouca importância para aquela
arte barroca. Dois ou três anos depois, demoliram o antigo convento para
construir o atual situado atrás do Santuário, conservando somente a admirável
entrada esculpida em pedra sabão – hoje isso não aconteceria. Ainda bem que,
logo a seguir, começaram os estudos pra valer das imensas e maravilhosas obras
do Aleijadinho.
Infelizmente as estátuas de pedra sabão continuam no tempo e suas intempéries.
Nos países adiantados, as obras de arte, que ficariam ao relento, são guardadas
e colocadas réplicas em seu lugar de origem. Outro dia fui a Congonhas e vi os
Profetas. Decepcionei-me, lembrando-me de quando e o quanto admirei a obra
prima do Aleijadinho pela primeira vez. Até o Profeta Daniel, a mais
espetacular escultura do Aleijadinho, sofre as conseqüências da burrice
congonhense, ou governamental, em não querer proteger obra tão importante, não
só para nós brasileiros – é um patrimônio da humanidade.
Na
década de 60 o MAM do Rio desejava levar as estátuas dos Passos para uma
exposição. O povo de Congonhas se uniu e proibiu que as retirassem. Foram
substituídas por obras do maior artista uruguaio e dos maiores das Américas.
Com a responsabilidade característica de nossos dirigentes, o MAM pegou fogo e
o povo uruguaio perdeu seu tesouro e a humanidade um de seus patrimônios –
colocaram a culpa no Abreu...
Mais uma
vez o povo de Congonhas se una para proteger o seu – o nosso! - patrimônio!...
E que o Senhor Bom Jesus nos proteja de nossos dirigentes... e nos abençoe!
*No
Seminário, quando entrei, eu menino, em mil novecentos e antigamente, usava-se
caneta de tinteiro. Hoje em dia, além das canetas esferográficas, os meninos
escrevem mais a lápis, ou usam a lapiseira.
Em cada carteira,
individual, havia um tinteiro. Quando a tinta acabava, um colega enchia-o –
normalmente ele executava essa tarefa antes de a gente chegar à sala de
estudos. Nas salas de aula também havia tinteiro para cada aluno. A gente
menino, ao escrever, apertava muito a pena estragando-a constantemente – era só
pedir outra que o padre arrumava.
As canetas de luxo eram
as Parkers: a prateada, a P21, e a de ouro, a P51. Acho até que havia a P71, a
de ouro com diamante nas pontas – duas – da pena ou algum incrustado em seu
corpo. Com uns doze anos, achei na rua uma P21, pouco antes de ir para o
Seminário – sucesso entre os colegas.
A cor
normal da tinta era o azul, mas havia também as tintas coloridas, sendo o
vermelho e o preto as cores mais comuns.
Com o tipo normal de
pena, de aço, na aula de caligrafia, eu consegui escrever letras tão pequenas,
que até o Padre Marcos Gabiroba, que nunca me topou, admirou-se.
*Em
Congonhas, em meados de setembro, anualmente, o Jubileu do Senhor Bom Jesus de
Matosinhos – dura uma semana, normalmente de 07 a 15.
Durante
essa festa, montam-se barraquinhas nas principais ruas da cidade,
principalmente a que leva ao Santuário. Vende-se de tudo. Bugigangas são as
preferidas dos peregrinos - um verdadeiro paraguai.
Todos os
anos os padres, no final do Jubileu, presenteavam-nos, os seminaristas, com um
cruzeiro – talvez o equivalente a três dólares de hoje. Tínhamos algumas
horas para percorrer as barraquinhas e comprar algo. Naquele ano o presente
dobrou para dois cruzeiros. Éramos divididos em duas turmas para sairmos à rua.
Eu, muito gripado, não me foi permitido sair. Ao chegar a primeira turma, os
colegas traziam algumas novidades, como a caneta esferográfica e a meia de
nylon – usávamos canetas tinteiro e meias de algodão.
Pedi a
um colega para que comprasse para mim canetas esferográficas azul - a que
comprou - vermelha e preta, para eu desenhar. A turma que me rodeava zombou de
mim chamando-me de bobo:
- Cê
num viu que dessas aí só inventaram canetas azuis?
- Se
não achar, compre-me uma dessas meias novas que a gente lava e seca logo!
Só no ano seguinte
consegui as canetas coloridas... e as meias de nylon idem!
*À noite, na casa do Sô
Leandro, na rua da Serraria, tinha eu as primeiras aulas e noções de música.
Adorava escutar e seguir a banda do Sô Leandro, talvez por eu ser neto do Sô
Pedro Araujo, tocador de tuba. Vovô Pedro formava um conjunto perfeito com a
tuba: os dois parrudos e do mesmo tamanho!
No Seminário, quando
entrei para o primeiro ano, fiz antes o admissão, pedi para entrar nas aulas de
piano ou harmônio e não consegui. Em capas de cadernos desenhei um teclado;
colocava-o em cima da carteira e tocava, ou melhor, dedilhava
minhas supostas músicas. Padre Lima, que me vetara para aprender piano ou
harmônio, encaixou-me numa aula de harmônio com o Padre Penido. Dom Lara e o
Padre Henrique foram também meus professores.
Tomava parte no coro e
na Schola Cantorum, especializada em canto gregoriano,uma turma dos doze
melhores cantores.
Na banda de música, a
furiosa, tocava saxofone, em mi bemol – aquele reto - mas gostava de
experimentar todos os seus instrumentos ou regê-la de quando em vez.
Em casa tenho um piano
que foi do Seminário, que os Padres Redentoristas deram para a Deuzinha, minha
irmã, e ela passou para mim. Esse piano, francês de 1932, tem cepo de madeira,
um som suave e doce – tipo do que Beethoven aperfeiçoou – pode ser desmontado
em segundos - uma jóia, mas desafina fácil, principalmente com a umidade
na época das chuvas.
*Quando tinha uns sete ou oito anos, Padre Deolindo chamou-me para ser coroinha
e ensinou-me as respostas da missa - tudo em latim.
Eu papagaiava meu latinorum, sem mesmo entender
que havia o latim ou outro idioma. Graças a Deus que o Papa acabou
com latim da missa! E eu sempre questionava os padres sobre o rezar a missa, e
outras liturgias, em latim. Respondiam-me que, mesmo não entendendo, tinha o
mesmo valor de orações em português – nunca concordei.
Indo para o Seminário de Congonhas, nos sermões, ouvia duas frases constantes e
marcantes: uma era essa de Santo Agostinho (354-430 aD), pois logo fui ser
cantor no coro orfeônico: Qui bene cantat, bis ora - Quem canta bem reza
duas vezes.
Na leitura
do latim, a consoante final de uma palavra se liga à vogal inicial, se a
houver, da palavra seguinte. Ouvia a frase de Santo Agostinho... e aquele bisora (bis
ora) não me saía da cabeça. Como o Padre não traduzia, todos, menos eu,
entendiam - ficava eu grilado e procurando saber o que tinha a ver cantar
com besouros! Pelo menos se fosse grilo!...
A outra
era a frase de Santo Afonso Maria de Ligório, fundador da Congregação
Redentorista - um dos sábios Doutores da Igreja, cujos livros já tiveram
mais de um milhão de edições: Quem reza se salva, quem não reza se condena.
Numa das visitas que mamãe me fez, levou-me um belo
livro, Meditações, escrito por Santo Afonso. Nesse livro, o inferno é
descrito e pintado com cores tão vivas que eu até tremia e me arrepiava quando
lia algumas dessas meditações – com meus pecadinhos juvenis, chegava a sentir
um pouco o calor do fogo do inferno.
*Em mil
novecentos e cinqüenta e pouca coisa, o Papa Pio XII acabou com o latinorum
das missas e das liturgias da Igreja. Aliás, obrigou-se o Padre a celebrar a
missa em sua língua pátria. Parece-me que hoje permite-se rezar missa em latim
– eu gostaria de assistir a uma dessas!
E não
era só a missa em latim, com o Padre dando as costas para o público, que o fiel
deveria suportar: havia também o latim do batizado, da extrema unção ou da
encomendação fúnebre, da crisma e de tudo mais da igreja.
Para a
gente comungar, deveria ser em jejum absoluto – já viu que missa à noite não
havia, só até ao meio-dia! E não se podia tocar na hóstia e muito menos tomar o
vinho, como hoje acontece muitas vezes.
E ainda
diziam pra gente que as rezas em latim, só de ouvi-las, valiam mais que as
rezadas em português! Dá pra entender?... Nem a ordem e muito menos o latinorum!
Nunca concordei...
No
Seminário eu falava para os padres que preferia rezar em português.
*O
Carioca, irmão de nosso colega Hélio Athayde – mais tarde Padre Hélio -, jogava
futebol no Clube Guarani de Juiz de Fora - só porque morava em Juiz de Fora,
tinha esse apelido – é muita pretensão desses juiz-foranos, não acham? Aliás,
dizem eles que, quando jogam bola no quintal de casa, se o chute é um pouco
forte, ela acaba caindo na praia de Copacabana... Dá pra agüentar esses caras,
dá?...
Como
profissional, o Carioca ficou conhecido e amigo do Flávio Costa, treinador da
Seleção Brasileira e do Vasco da Gama, na época o maior e melhor time do Brasil
– entre seus jogadores havia o Belini, Almir, Orlando, Vavá. Tempos bons em que
o técnico da seleção brasileira tinha um clube para dirigir – hoje – vox populi
- corre tanto dinheiro que técnico dirige só a seleção e é dirigido pela
CBF, pelos patrocinadores e por clubes da Europa.
Flávio
Costa passou alguns dias de férias em Congonhas e lá se encontrou com o Carioca
– que lhe servia de cicerone.
No
Seminário preparávamos para jogar contra a seleção de Congonhas e região. Em
nossos treinos apareciam por lá o Carioca e o Flávio Costa, que até nos ajudava
com algumas instruções técnicas. Ganhamos o
jogo!
Tínhamos
um grande goleiro, o José Agostinho. Um dia o Flávio Costa resolveu ensinar-lhe
alguns macetes, jogando-lhe a bola com as mãos. Eu brinquei com o Flávio Costa
dizendo-lhe que, se eu fosse o goleiro, ele poderia jogar mil e uma bolas que
eu pegaria todas. Ele aceitou o desafio. Jogou algumas, e como viu que eu
pegava mesmo, desistiu, sorrindo muito e dizendo que eu seria um bom goleiro
reserva de seu time. Quando soube que eu sairia do Seminário naqueles dias,
falou-me para eu procurá-lo no Vasco. Quando cheguei a Fabriciano, contei para
papai, mas ele não se interessou – e eu também não sabia avaliar o quanto seria
bom eu ir para o Vasco da Gama do Rio de Janeiro.
*Quando
entrei para o Seminário de Congonhas, um antigo fabricianense, o Savernini, era
considerado um craque de bola – eu também.
O Ivan
Rolim era o craque mirim. O Irnac, irmão do Ivan, também era bom de bola. Outro
bom de bola era o Ilton Quintão.
Alguns
seminaristas vindos da região de Fabriciano – Acesita, Jaguaraçu e Mesquita –
quando não ótimos jogadores de futebol, pelo menos bons eram considerados.
Resultado: tinha-se em conta Fabriciano e região como um bom celeiro de craques
do futebol.
Ilton
Quintão é um empresário bem sucedido no ramo de comércio.
Ivan
Rolim é médico ortopedista, casado com a Maria das Graças, cardiologista – a
médica de papai por alguns anos. Quando papai tinha que fazer algum regime e
recusava, recorria-se à Gracinha e ele aceitava suas recomendações.
O
inteligentíssimo Irnac Rolim foi, ou é, o maior jogador de xadrez que conheci.
Havia um engenheiro da Usiminas todo entusiasmado porque ganhou um torneio em
Ipatinga. Seu entusiasmo era tanto que andava com um jogo de xadrez a tiracolo.
Ele ia muito ao Laboratório Franco, onde eu trabalhava, e a gente batia um bom
papo. Falei-lhe sobre o Irnac e logo se interessou em conhecê-lo. Fomos à
Farmácia Rolim, onde os dois disputaram algumas partidas. O Irnac ganhou todas
fácil, fácil - e o cara sumiu.
*No internato éramos
obrigados a comer de tudo servido na mesa, nem que fosse uma porção mínima –
uma colher de arroz ou feijão, por exemplo. Nunca tive problema em comer algo.
Alimentava-me de tudo – se fulano come, eu também como.
O cozinheiro do
Seminário era um holandês - o Brodão, um irmão leigo grande e gordo. Ele
preparava uma carne com gelatina, gelada e super azeda, assim como um cozido de
folhas de beterraba vermelha: dois pratos intragáveis. O arroz com bacalhau era
apreciado por todos. O arenque seco “pouco católico” – suportava-se! Nos
dias de festas, distribuía-se uma garrafa de cerveja para três estudantes – os
padres tomavam diariamente - cerveja fabricada lá mesmo.
Na Casa de Campo, onde
passávamos as férias – não tínhamos férias nas casas de nossos pais –
encontrávamos e pegávamos muitos animais, entre os quais o gambá, teiú, jia e
tatu, saboreados pela turma que os pegou. Como o terreno por lá era muito
pedregoso e ruim - cascalho por todo lado – para se plantar algo, era
necessário cavar um buraco de uns 80 cm x 80 cm e enchê-lo com terra estercada.
A quem furasse e fizesse esse plantio, o Padre dava uma garrafa de cerveja – já
perceberam que eu nunca ganhei uma...
No Parque de Exposição
de Lafaiete, houve um ano em que os churrasquinhos foram ditos de carne de
cachorro e gato. A polícia teve até que intervir, de tão fragrante estava a
coisa.
Um meu vizinho saboreou
todos os gatos da região; uma vez inclusive, levou-me um bife, jurando de pés
juntos que não era de carne de gato. Desconfiado, achando-o meio duro e escuro,
comi – nada apetitoso... e nem assustador.
Hoje posso afirmar que
era carne de gato! Mas comi como se não o fosse.
*Fim de
ano no Seminário, os seminaristas éramos nomeados para algumas “profissões” durante
o ano seguinte.
Todos os
anos indicavam-me para desenhista. Os desenhistas escreviam faixas, desenhavam
programas de festas, alguns desenhos ou pinturas na capela ou para as peças de
teatro.
Três os
sacristãos: o primeiro era o Luciano, Dalton o segundo. Comecei pelo terceiro,
e segundo no ano seguinte.
Fazia
parte do pessoal que podia pegar os animais para o museu de história natural do
Seminário. Os animais peçonhentos, venenosos, não colocados no museu eram
enviados para o Instituto Butantã em São Paulo. Durante as férias na Casa de
Campo, íamos coletando as cobras e as colocando em caixas enviadas pelo Butantã
e no final, em um pátio interno, soltávamos as cobras e alguns sapos para elas
comerem. Os meninos mais novos debruçavam-se no parapeito da varanda e se
admiravam de eu estar ali no meio daqueles bichos pavorosos para alguns.
Era bom
nos esportes – acho que exceção na Família! – principalmente futebol, mas
também pertencia ao time de basquete e vôlei. Meu neto, o João Pedro, é muito
bom no futebol e natação; já o Luis Filipe é um canhoto craque no futebol!
Nos
passeios, principalmente nas grutas e serras, era bastante destemido – topava
tudo!
Desenhista, sacristão, museu, pegador de bichos, organista – no esporte
futebol, vôlei e basquete – gostava de me aventurar em tudo...
*O
dormitório, a sala de estudos e a capela do Seminário em Congonhas
localizavam-se no segundo andar.
Antes de cada aula tínhamos meia hora de preparação na sala de estudos e
depois descíamos para a sala de aula, passando por uma escada em que, em uma de
suas paredes laterais, havia uma estampa de São José. Não sei o porquê, talvez
a falta do pai, essa foto de uma pintura, famosa na Europa, impressionou-me
desde quando deparei com ela pela primeira vez –, via-a muitas vezes ao dia, e
cada vez a achava mais interessante e cheia de detalhes.
Um São
José já meio velho, de barbas longas, carregando um Menino Jesus belo e meigo,
de talvez um ano, bochechas rosadas, cabelos loiros e cacheados – num sorriso
de satisfação, penso que por estar seguro no colo do pai. Do lado esquerdo, em
suas mãos, um pé de lírio, com alguns.
Em
Lafaiete, minha loja era em frente à Igreja São João – igreja de linhas
simples, porém imponente e bem construída, com uma torre bem alta. Sempre
desejei visitar a torre, e externava esse meu desejo para as pessoas que
ajudavam na Igreja.
Dona
Geni, a melhor colaboradora do Padre Cornélio, convidou-me a visitar a torre. O
primeiro andar após o coro serve de depósito de quadros e restos de decoração
da Igreja. Jogados no meio dessa bagulhada, duas estampas antigas, emolduradas
simplesmente, encostadas num canto: um São José e um Sagrado Coração de Jesus.
Interessei-me pelos quadros e Dona Geni pediu ao Padre Vigário que me desse o
Sagrado Coração. Depois de algum tempo ela renovou o pedido e recebi o São
José.
O São
José era igual ao encontrado na escada do Seminário, a estampa, bem maior, um
pouco rasgada e a moldura quebrada. Restaurada, e com nova moldura, coloquei-a
no meio de minha escada – descendo, ou subindo, passa um mundo de lembranças
boas...
Estampas
alemãs, de 1932, e no rodapé impresso “Sagrado Coração de Jesus” e
“São José” em sete línguas.
*No Seminário havia vários irmãos leigos redentoristas: o fazendeiro, que
cuidava da chacrinha; o cozinheiro - o Brodão; o irmão Inácio – o Brodinha - o
maior colaborador dos alunos, pois era o enfermeiro, o ropeiro; o responsável
pelo refeitório e auxiliares de arrumação em todo o Seminário; Irmão José o
único brasileiro, holandeses os outros - apareceu
mais tarde, ajudante do Irmão Inácio. Com todos eles eu me dava muito bem, mas
o que eu mais admirava era o Irmão Bonifácio: humilde, educado e cortês; diziam
até que era ele um engenheiro ou arquiteto. Vivia em sua carpintaria fazendo
artes – um artista nato, um gênio. Substituía, de quando em vez, o Irmão
Inácio, e dava aula de piano. Irmão Bonifácio: um santo irmão, um irmão santo,
um sábio santo e um gênio generoso! Como foi bom conviver com ele e ter sua
amizade!
- Perceba, escrito sobre quatro linhas - tetragramas -
enquanto que a música polifônica, a escutada
normalmente, são cinco as linhas.
- Cada nota dura apenas um tempo – equivale a uma semínima na polifônica
(meio tempo) -, a não ser quando é seguida de um ponto, durando então dois
tempos. Toda nota é quadrada (ponto quadrado - punctum quadratum - ou ponto
inclinado - punctum inclinatum); podem ser simples ou agrupados em neumas. Na
polifônica é arredondada, ou redonda, podendo durar de um dezesseis avos
(1/16) a quatro(4) tempos.
- A barra inteira divide os compassos. Repare, os compassos não têm
número de tempo definido (o último compasso tem quase oitenta tempos), logo,
não é uma música quadrada, como a polifônica, onde cada compasso tem sempre a
mesma quantidade de tempos e também é dividido por uma barra, sendo a duração
indicada no início da música. Por exemplo: a marcha tem dois tempos e
a valsa três - em cada compasso.
- A barra menor serve principalmente para respiração, quando se
canta em coro, isto é, alguns cantores podem respirar, pois o compasso deve ser
cantado sem pausa.
- As claves podem ser de "dó" e de "fá", colocadas em
qualquer linha - isso, muitas vezes, evita que as notas sejam escritas fora das
linhas - pode até acontecer, mas não é muito comum. Já na polifônica é
freqüente.
- Normalmente as composições são da idade média - em seus primórdios, a música
tocada por David em sua harpa, mais ou menos um milênio antes de Cristo.
- É uma música vocal, cantada em uníssono. É muito mais bonita à capela,
isto é, como se canta na Capela Sistina - a Capela do Papa no Vaticano -
sem acompanhamento.
Benedito Franco
Benedito, que beleza de relato, é tudo aquilo que eu queria ter capacidade de escrever, detalhes primorosos de um tempo vivido e curtido em seus mínimos detalhes. Parece-me, mudando os nomes e circunstâncias, a mesma história por mim vivenciada, as coisas são tão semelhantes que me confundem se vivi aqui em Aparecida ou fui parte do seminário de Congonhas. Parabéns por essa primoroso, harmônico e poético relato. Alexandre Dumas Pasin
Meus grandes amigos, Bené e Dumas, também a todos os nossos coetâneos dos áureos tempos de seminário, dispomos aqui, tanto pelo Facebook como pelos blogs grande oportunidade de mostrarmos a todas as pessoas aqueles tempos que ajudaram na construção de nossas vidas. Assim, continuem sempre relatando todas as REMINISCÊNCIAS possíveis de se lembrar...Isso é uma forma grandemente positiva de veicular mensagens!!!!Um grande abraço! A.Ierárdi
Celma Deuze Franco · Amigo(a) de Benedito Franco
BENÉ--Eu adoro sempre que você ou algum de seus colegas citam o lema""Távola Redonda "- demonstra a união que continua entre os seminaristas da época e não deixa que as recordações e saudades se apaguem como luzes. Muito legal ! Meu abraço para todos que participam desta mesa. Deuzinha--22.05.16(Irmã de Benedito Franco)
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