domingo, 11 de janeiro de 2015

Minha história no Juvenato São Clemente Maria – Congonhas – MG Jan.1950 a set.1957

BENEDITO FRANCO
061 – Coroinha
           Mamãe, muito religiosa, ia a todas as missas possíveis e impossíveis também. Nos meus oitos  anos, encaminhou-me para ser coroinha - falava em eu ser padre. Aliás, meu irmão mais velho, o Pedro Célio, estudou no histórico Caraça, um seminário dos Irmãos Maristas - no meio de uma grande serra de minério de ferro, no município de Catas Altas, perto das também históricas Santa Bárbara e Barão de Cocais, MG. Aliás, há uma ferrenha briga entre Santa Bárbara e Barão, os dois reivindicando a posse do Caraça para seu município.
          Além de proporcionar bolsas de estudos para alguns seminaristas, minha mãe ficava de olho nos padres:

          - Zé Franco, o padre tal está com o sapato velho, compre um para ele. Ou:

          - Zé Franco, o outro está com a batina desbotada e o paramento não está bom...
          - Zé Franco... a camisa do padre...
          Nas grandes festas, como a do padroeiro São Sebastião, havia os festeiros - o cargo mais importante do lugarejo. Papai e mamãe festeiros, poder-se-ia esperar festa de arromba - o dinamismo, a vivacidade e a liderança de mamãe, mais o apoio de papai, abrilhantavam quaisquer festas.
         Sonho maior de mamãe: um filho padre. Mais tarde realizado - o nono dos doze filhos ordenou-se - Padre Geraldo Ildeo Franco.
          O Padre Deolindo ensinou-me as respostas que o coroinha respondia durante a missa, em latim. Como é complicado decorar algo que você não entende - para dizer a verdade, nem sabia o que era o latim ou que existia outra língua que não a nossa.
          É... mas acabei aprendendo e papagaiando meu latinorum todos os dias na capelinha de Nossa Senhora Auxiliadora, do Hospital Siderúrgica, ao lado da casa paroquial de Fabriciano, ou na capela de São Sebastião, no sopé do morro, entre a matriz de São Sebastião e a casa paroquial atuais. Ainda me lembro: "Confiteor Deo omnipotenti..." (eu me confesso a Deus Onipotente). Interessante que papagaiava o latinorum todo errado e no seminário, apesar de saber bem o latim, falava as respostas da missa todas erradas, como aprendi.
          Quando Dom Helvécio aparecia, arcebispo de Mariana, sede do arcebispado a que Fabriciano pertencia, chegava em um carro especial da Estrada de Ferro Vitória Minas - carro lindo e de luxo. Recebido pelo Dr. Joaquim, o Coronel Silvino Pereira, o vigário e as pessoas mais importantes de lugarejo - eu olhava o carro, com toda sua eminência e imponência, com olhos arregalados!... Mas um dia consegui entrar naquele carro, decorado por dentro com cetim e babados, tudo branco – fiquei extasiado! É! O Arcebispo... Sua Excelência Reverendíssima era muito importante mesmo!... Já não se fazem mais bispos como antigamente!
          Ajudava a missa do arcebispo e depois era convidado para tomar café, na mesa, junto com ele, na casa onde se hospedava, do Dr. Joaquim, Superintendente da Belgo Mineira na região. Num desses cafés, presenteou-me com um seu retrato, igual ao colocado em todas as paróquias da arquidiocese, como os do Presidente da República e do Governador nas repartições públicas. 
          Dom Helvécio idealizou, lutou e concretizou, o Parque Florestal, assim como o caminho pela ponte velha, atravessando Fabriciano e indo para Ipatinga, passando pelo Caladinho.
          Comentava-se que Dom Helvécio recebera o título de General, conferido pelo Presidente Getúlio Vargas; tinha também um irmão bispo; faleceu em um colégio de Fabriciano, o Angélica, onde mais tarde fui professor de matemática, e onde se fez um desenho de seu perfil, riscado por uma irmã, sobre a sombra de seu rosto, na parede ao lado da cama onde morreu. 
O Superintendente da Belgo Mineira era o rei da região. Rei nada... Imperador! Mandava e desmandava. Colocava-se o delegado numa ótima casa da Belgo, principalmente para resolver questões de terra - da Belgo contra os fazendeiros... perceberam quem ganhava - é o que se comentava. Um fazendeiro me disse que defendeu, a bala, uma invasão do pessoal da Belgo, de um pedaço de terreno de uma de suas fazendas. Quando pequeno, ouvia cada barbaridade...
          Minha mãe, orgulhosa de minhas funções de coroinha, não me deixava ajudar a missa sem sapato - nem que fosse só com um - até criticavam dizendo que usava um pé de sapato para poder economizar - andando sempre descalço eu machucava muito os pés, pois gostava muito de jogar bola, correr e brincar nos campos. Na época, todo menino andava sem sapatos - a não ser para ir à missa - até mesmo na escola ia descalço – e como os sapatos eram duros e desconfortáveis... Quando não eram os machucados, eram os calos...

          Os meninos andávamos de calças bem curtas - hoje seria um short curtíssimo. Como coroinha, usava uma batina preta e sobrepeliz branca - os padres, de batina preta constantemente, recebiam a tonsura - uma coroinha na cabeça (raspavam, no alto da cabeça, uma roda de uns quatro a cinco centímetros de diâmetro). As missas em latim, com o padre virado para o altar e não para o povo e em jejum absoluto; as missas obrigatórias aos domingos; a comunhão dos fiéis também em jejum absoluto.

          Quando Fabriciano lutava para se emancipar de Antônio Dias, donde era Distrito, uma comissão de moradores ilustres fabricianenses - entre eles papai, Dr. Rubens, Dr. Albeny, Dr. Joaquim, Coronel Sylvino Pereira, Sr. Lauro Pereira, Sr. Raimundo Alves, João Bragança, Claudiano, e o vigário Padre Deolindo - foi a Belo Horizonte conversar e convencer o Secretário de Governo encarregado do caso. Expôs ele a impossibilidade de Fabriciano passar a cidade, por não haver um documento demonstrando a quantidade de moradores da área a ser emancipada - englobava os municípios de hoje: Timóteo, Ipatinga e Fabriciano. 
Toda a comissão apavorada! Mas, Padre Deolindo, nosso humilde e pacato vigário, dirigiu-se ao Secretário:
           - Um levantamento de batizados que acabo de fazer, acho preencher a exigência; nele constam um pouco mais pessoas do que Vossa Excelência exige. Serviria? Retirou do bolso da batina alguns papéis embolados, desamassou-os, acertou-os e os mostrou ao Secretário. Este leu - expectativa geral e comoveu a todos - e bradou: - Isto serve! Fabriciano será emancipado! Euforia incontida!
          Papai, como Juiz de Paz, assinou a Ata de Instalação do Município de Cel. Fabriciano. Dr. Rubens foi o primeiro Prefeito. Mais tarde, papai como Juiz de Paz assinou a elevação de Fabriciano a Comarca.
SEGUE EM MAIS INFORMAÇÕES

62 – O terço da mamãe

Como mamãe, diariamente, ia a todas as missas possíveis e impossíveis, seu maior orgulho: ter um filho seminarista. Seu maior sonho: ver o filho ordenar-se sacerdote – mais tarde realizado.
À noite, mamãe reunia a família em seu quarto para rezar o terço. Rezávamos com devoção e bem compenetrados – a maioria deitada na cama de casal – e há coisa melhor que a cama da mamãe?... E cabe todo mundo!
De quando em vez ela resolvia rezar todo o rosário – três terços.
          O problema maior era quando mamãe começava a rezar três Ave-Marias e um Pai-Nosso para cada uma das centenas de intenções – acabavam jamais! Continuava ela firme e forte, e a gente doida para o término daquela ladainha. E por falar em ladainha, os milhares de Santos e rogai-por-nós invocados encompridavam ainda mais a interminável oração. Quando a maioria caía no sono, mamãe parava. Que alívio!
            Único consolo: deitar na cama dela! A cama da mamãe é uma delícia!...

II - CONGONHAS       

063 - Rumo a Congonhas

O ser coroinha, mais o sonho e os incentivos da mamãe, a labuta diária na igreja e o contato com os padres, levou-me a pensar em ir para o seminário.
         Um dia o sonho virou realidade.
         Mamãe preparou o enxoval.
         No dia 22 de janeiro de 1950, papai e eu embarcamos na maria-fumaça, rumo a Congonhas.
         Janeiro, mês de muita chuva. Aquele janeiro chuvoso afetou, e muito, as precárias ferrovias da Vitória Minas e da Central do Brasil, nos trechos de Fabriciano a Nova Era e de Nova Era a Belo Horizonte. Resultado: as barreiras obrigaram-nos a pernoitar em Nova Era, onde passei minha primeira noite em um hotel e acabei conhecendo o primeiro arranha-céu: um pacato prédio de três andares! Em Fabriciano havia tido um belo prédio de dois andares, estilo antigo, de táipa-de-mão, em frente ao Hotel do Sô Cornélio, mas desmoronou-se aos poucos - logo depois, o Coronel Silvino Pereira construiu sua imponente residência, com dois andares.
         Na viagem de Nova Era a BH conhecemos um casal de fazendeiros que nos indicou uma pensão onde costumavam se hospedar. Papai se arrependeu, e muito, pois a pensão, no início da Rua da Bahia, era péssima! Só ao entardecer do dia seguinte haveria trem para Congonhas. Aproveitamos a manhã para eu conhecer um pouco Belo horizonte, andando de bonde por vários bairros - as ruas, quase em sua totalidade, calçadas com paralelepípedo e, no meio delas, o poste...
         Um menino, de mais ou menos minha idade, pega uma carona no bonde, senta-se ao meu lado e rápido trocamos algumas palavras. Naquele tempo o motorneiro conhecia a meninada das ruas por onde passava, diminuía a velocidade e os meninos pulavam no estribo e andavam um ou dois quarteirões, agradando e sendo agradado pelo condutor e pelo trocador.
         À tarde, conheci o Cine Brasil – não me lembro o filme. Lembro-me como me extasiei com a beleza do cinema e pelos carros brilhando nas ruas – suas pinturas ainda de tinta do tipo laca, que, por seu brilho, tornavam os imensos carros bem mais atraentes que os de hoje. As luzes de neon das propagandas nas ruas encantavam-me ainda mais. Aquele piscar de luzes coloridas tornava Belo Horizonte uma cidade viva e alegre.
         Tomamos u’a maria-fumaça mais possante – não a lenha, mas a carvão mineral - na bela estação ferroviária e admirei-me da largura dos carros – a Vitória Minas e a Central do Brasil, em que eu andara anteriormente, eram, e são até hoje, de bitola estreita - a BH-Congonhas é de bitola larga.
         Surpresa grande tive quando no trem encontrei aquele menino do papinho no bonde: era o Hugo que também ia para o Seminário de Congonhas. Hugo e eu sempre fomos ótimos colegas durante o tempo em que esteve no Seminário.
         Em Congonhas, o taxista subiu o imenso morro nos deixando ao lado do Santuário do Senhor do Bom Jesus, no bom Hotel Colonial.
         No dia 25 de janeiro, festa de São Paulo, entrei para o Seminário São Clemente Maria, dos Padres Redentoristas, em Congonhas, MG. Neste ano de 2009, a Congregação Redentorista comemora o centenário da canonização de São Clemente Maria Hofbauer, considerado o seu segundo fundador.
         Mamãe gostava que a gente usasse calças bem curtas. No Seminário, os novos colegas olharam espantados e o Diretor me mandou trocar de roupa, vestindo uma calça comprida! Minhas roupas eram marcadas com o número 47. Até os calções batiam abaixo dos joelhos, mais compridos que os de hoje, e ainda se usava camiseta até para nadar e tomar banho!
         Para os primeiros dias, a gente ganhava um anjo-da-guarda – um colega mais velho que nos ensinava todo o regulamento do internato. O Dagoberto, de Ferros, foi o meu anjo-da-guarda.
         Alguns dias depois, o Diretor, na capela, falou os nomes dos novos seminaristas. Deu-me um ataque de riso quando escutei o nome do colega do bonde: Hugo Roberto Tocafundo!
         BF 280408

064 - O internato
         Quando ainda criança, doze anos, meu pai me levou para o internato dos Padres Redentoristas em Congonhas, MG, dirigido por padres holandeses - o Diretor e alguns professores.

         Costumes hoje inconcebíveis:
         Calções e camisetas usados obrigatoriamente para tomar banho normal de chuveiro - abolidos um ou dois anos antes de eu entrar. Nadávamos de calção longo, abaixo dos joelhos, e camiseta. Camiseta abolida meses depois e o calção chegou ao tamanho normal, para a época, um ou dois anos após minha chegada, com a tomada das rédeas da direção por padres brasileiros - entre eles o Padre Alberto Ferreira Lima  que modernizou quase tudo. Natação é coisa pouco comum em Congonhas por causa do clima, talvez três a cinco meses durante o ano, apesar de hoje haver grande parque público, da Prefeitura, perto da cidade, mas que fecha aos domingos e feriados - com uma vistosa e bela cachoeira e mais de vinte piscinas.
Quando cheguei, banho obrigatório aos sábados. Jogávamos futebol, em campo de terra e muita poeira, todas as terças e quintas - o banho não exigido para quem jogasse, mas os padres brasileiros começaram a obrigar os participantes. Calculem a quantidade de chulé de cada jovem em idade propícia - a meia de algodão usada durante uma semana endurecia nos pés - a de nylon ainda inexistia - e como a de algodão caía sobre o sapato, usava-se a liga para segurá-la. No dormitório, quase duzentas camas uma ao lado da outra, e os alunos tirando sapatos e meias ao mesmo tempo. Trocávamos de roupa aos sábados. Os suspensórios faziam parte do enxoval.
         Holandês não toma banho - talvez uns três a cinco por ano. Na França, o governo incentiva o uso de chuveiro, pois muitas casas e prédios não têm - é por isso que o francês inventou tanto perfume. Minha irmã Celma especializou-se em hematologia na Bélgica, onde ficou conhecida na grande Universidade Livre de Bruxelas, por ser a moça que toma banho. Uma senhora, doméstica na casa de um padre holandês, contou-me que, apesar de o padre tomar banho de três em três meses, a roupa não fedia mais que a nossa - trocava normalmente como nós - mas, parece-me, por causa do clima, os holandeses transpiram menos.
         Éramos divididos em três turmas: menores, os do preliminar e primeira série; os médios, das segunda e terceira séries, e dos maiores, das quarta, quinta e sexta séries. Só se podia falar, brincar ou andar junto com colega de turma - tudo separado para cada turma, tanto nos recreios como nos esportes. Nunca se podia conversar com apenas um colega - era a proibida amizade particular -  andar sempre com dois ou mais.
         Havia muita coisa boa também.
         Comida farta e ótima. Tudo servido no prato tinha que ser comido – nada podia sobrar – e havia um mínimo a ser servido. No jantar uma sopa antes do prato principal e todos tinham que comer pelo menos um pouco de sopa. Havia um menino de Acesita que detestava sopa – ficava ele no refeitório depois de todos acabarem de comer até terminar o recreio, para forçá-lo a comer a bendita sopa. Eu sempre gostei de sopa. Esse menino acabou saindo do seminário por causa da sopa. Foi o único senão que achei no seminário – eu, menino, achava uma covardia o que se fazia com ele – mas era julgamento de menino; os Padres tinham suas razões e a mim não me cabia discuti-las. Conversei com pessoas que estudaram em internatos, em nenhum deles havia tanta fartura e conforto. Fabricavam cerveja, distribuída para nós nos dias de festas - achava um gosto horrível. Fora do internato, permitia-se fumar. Na época -  talvez hoje não seja assim - na Holanda havia uma festa familiar para os rapazes que completavam quinze anos, debutavam, quando recebiam permissão e começavam a fumar e a beber cerveja - presentes de variados tipos de cigarros, charutos e cervejas - até mesmo no seminário. Parece-me que as moças ficavam sem a festa de quinze anos.
         Na minha terra, Fabriciano, conhecia tomate do grande e o tomate do mato - tomatinho. Em Congonhas, conheci o tomate comum. Após as refeições, servia-se uma sobremesa - podia ser um pouco de doce ou uma fruta. Um dia serviram uma fruta de aparência igual ao recém descoberto tomate - não comi, estranhando dar tomate como sobremesa. Depois me explicaram ser caqui - também desconhecido por mim. Fabriciano faz muito calor e não se planta caqui - não pega. Ainda não havia o Ceasa, que distribui alimento para todo o Estado.
         Acordávamos bem cedo, íamos à missa, quinze minutos de ginástica e depois o farto café. Às 9.30h e às14.30 serviam uma fruta. Antes da oração da noite, biscoitos ou o Koock, um delicioso pão de mel holandês.
         Nada nos faltava, mesmo para os menos dotados de bens - realmente iguais... mas não havia preto, negro mesmo, estudando lá.         
         Professores, uma plêiade de padres, dando o máximo de si. No início o Diretor era o holandês Padre Gregório, substituído pelo Padre Marcos Gabiroba, vindo a seguir o Padre Alberto Ferreira Lima. Os professores padres Barbosa, Neves, Geraldo Lima, Borges, Marcio, Marques, Leite, Penido, o futuro Bispo Dom Lelis Lara e os holandeses Walter, Henrique e Inácio e o polivalente Padre Anselmo.
Estudávamos nove horas às segundas, quartas e sextas; seis às terças, quintas e sábados; quatro aos domingos.
         Aulas de latim diariamente, com professores diferentes para cada turma - o professor de latim era o patrono da turma. Mais de doze horas de latim por semana. Quando quisesse ou precisasse de algo para a turma, recorria-se ao patrono, que se interessava em conseguir.
         Para cada aula, meia hora de preparação e igual tempo para o exercício sobre ela - uma hora para o latim, inclusive aos domingos. Meia hora de estudo livre, diariamente, quando líamos ou recuperávamos alguma matéria na qual se ia mal. Aos domingos, uma hora de estudo livre acompanhado de música clássica, aliás, só escutávamos música clássica. Quando entrei, nos dois primeiros anos, usava-se a vitrola de agulha, substituída a cada cinco a dez discos tocados! Depois apareceu a radiola com som estereofônico - uma coisa doutro mundo!    
         Assistíamos missa diariamente - duas aos domingos, uma delas cantada. Durante um bom período fui sacristão. Todos nós tínhamos algumas profissões, conforme seus dotes. Sempre fui desenhista e, durante algum tempo, organista e até regente do coro e da bandinha, além de trabalhar no museu, pegando e embalsamando animais. Antes do almoço aos domingos, cantávamos os salmos – uma música de uma nota só. No harmônio eu acompanhava os colegas cantando. De quando em vez eu subia meio tom e a turma gostava, pois quanto mais alto o tom, mais rápido se cantava e mais rápido aquela inacabável oração terminava – quando isso acontecia dos meios tons subirem mais vezes, o Diretor, de seu quarto, escutava aquela barulheira e vinha correndo para me chamar a atenção!
         E por falar em aprender, uma vez, num sermão, o Padre Marcos, diretor, falou que a Igreja Católica é formada por uma plêiade de pessoas doutas e sábias. Achei linda a palavra plêiade! No mesmo sermão usou paulatinamente - maravilhei-me com as duas palavras! - tinha uns treze anos.
         Durante as horas de estudo, alguns tinham aula de piano, harmônio ou violino, normalmente uma vez por semana e duas vezes de prática nesses instrumentos -  tempo  compensado no estudo livre. Aprendi harmônio - um pequeno órgão. Os instrumentos da banda eram aprendidos e treinados durante os recreios, por causa do barulho - os ensaios da banda também nos recreios. Tocava saxofone em mi bemol, mas gostava de experimentar os outros instrumentos também.
         Tínhamos um coral maravilhoso - cantávamos a quatro vozes e mais um coral especial, o de Canto Gregoriano - Schola Cantorum - pertencia aos dois.
         Praticávamos muito os esportes: vôlei, basquete e futebol - havia vários campos. Participava de todos eles. Gabo-me pouco do aprendido até aqui, mas... era muito bom no futebol... fui até convidado para jogar no super time do Vasco da Gama do Rio - convite feito pelo técnico Gentil Cardoso - quando saí do internato.
         Festas comemoradas com apresentações de poesias, de piano, a duas e a quatro mãos, e violino ou de um dos coros, discursos sobre o assunto - além de peças teatrais. Nunca falei em público.
         Muitos passeios às serras que circundam Congonhas - Casa de Pedra, Serra da Moeda, Morro dos Elefantes e Pico do Itabirito - todos de minério de ferro. Nas férias, na Casa de Campo, subíamos a Serra de Ouro Branco ou íamos às grutas atrás da serra (Grutas do Rodeio) - tão lindas como as da Lapinha ou Maquiné. Hoje o povo não pode visitá-las... Estão em mãos de firmas mineradoras - acabarão dinamitadas e desmanchadas para uso na agricultura ou indústria.
         Em certas épocas do ano íamos chupar laranja ou jabuticaba nas fazendas do Sr Juventino ou na do Sr. João Batista. Apanhávamos as frutas nos pés e depois íamos nos regalar com um lauto café com leite acompanhado de broas e biscoitos típicos da roça - que fartura!
         Normalmente passeios a pé e, quando longe, íamos de caminhão até onde havia estrada - estrada de terra.
         Três férias ao ano. Três semanas em maio e em setembro e a última iniciando depois do dia vinte de dezembro ao final de janeiro, passadas na Casa de Campo aos pés da Serra de Ouro Branco. Em casa dos pais nunca íamos - fiquei oito anos sem ver a maioria dos irmãos.
         Durante as refeições, um aluno lia, em voz alta, livros de vidas dos santos ou algum outro de interesse geral. Muitas vezes a leitura era rápida e podíamos conversar um pouco. Depois da terceira série, às quintas-feiras, não se falava português - praticávamos o latim, inglês, francês ou até mesmo o grego - também brincávamos com as línguas do "P" e do "F".
         Estudei durante oito anos em Congonhas.
         Como o mundo mudou nos últimos cinquenta anos!... Foi para melhor?...  
065 - Pico do Itabirito

Estudávamos num colégio interno, dos Padres Redentoristas, em Congonhas.
Naquele dia de São Marcos, 25 de abril, uma surpresa: um passeio ao Pico do Itabirito - 1.586 metros de altitude e a 20 km da cidade de Itabirito, MG. Adorado pelos povos primitivos da região, pela pompa tornou-se o Monte Sagrado. Inspirava a presença de deuses, fazendo a idolatria de indígenas que se reuniam em torno da enorme pedra, constituída de pura hematita (Do Gr. haîma, atos = sangue + Do Tupi ita = pedra) Pedra de Sangue. O Pico é tombado pelo Patrimônio Natural Estadual, mas, para visitá-lo, é necessário autorização da MBR. Apesar do tombamento, está sendo desmontado por essa mineradora, nem sempre com espírito de conservação da natureza ou espírito nacionalista - e os itabiritenses deixam!... Vai acontecer o que aconteceu com os itabiritanos: perderam o Pico Cauê - a Vale do Rio Doce o desmontou!
Um dia os itabiritenses só verão o Pico do Itabirito nas antigas fotografias, no brasão da cidade ou em sua bandeira! Acordem!
Quando quiserem ver horrendos crimes ambientais, passem pela estrada de Mariana a Catas Altas, ou de Congonhas a Belo Vale – nossa imprensa se cala! A Vale deixa as serras e vales valendo nada!... e ainda se diz cada vez mais verde e amarela!... talvez vermelha, azul e branca demais...
As mochilas preparadas e os caminhões, com tábuas atravessadas nas carrocerias, serviam de bancos, esperando-nos. Os chauffeurs, o Sô Geraldo e o Barbosa, bons profissionais, apesar dos caminhões de marcha seca e dura e da estrada de terra, cascalhada com pedra de minério de ferro. Não havia ônibus.
Entramos na antiga estrada de terra vermelha, rumo ao Pires, e daí seguimos pela BR 040, com promessa de ser asfaltada em breve. O Viaduto das Almas pronto - à época, uma das Sete Maravilhas do mundo, pelo menos para nós - conhecíamos apenas pontes de madeira. Mais ou menos na hoje entrada para Moeda, seguimos à direita até o pé do Pico do Itabirito.
Viagem agradável, apesar dos trancos e solavancos dos caminhões - ou trancos e barrancos, como dizíamos - estávamos acostumados. Cantávamos em coro e conseguíamos até cantar músicas executadas pelo nosso coro, a duas, três ou  mesmo a quatro vozes – “Luar do sertão”, “Va, pensiero...”, “Tantum ergo” e outras muitas. Coro ótimo - fui organista durante algum tempo, chegando a regê-lo e à pequena banda de música do colégio.
Nunca fui um grande músico - um músico razoável que gostava de experimentar todos os instrumentos da bandinha - a furiosa! - e adorava o órgão - nem era órgão e, sim, um harmônio - mas, era chamado de organista. O harmônio é um pequeno órgão, cujo fole é tocado com os próprios pés do organista - os órgãos de hoje são eletrônicos e não possuem aquele som maravilhoso do órgão original.
Chegando ao monte, gigante de minério de ferro, despontando num planalto, talvez da altura do Pão de Açúcar, montávamos acampamento a seus pés. É lindo contemplá-lo de perto, debaixo de suas barbas - dá mesmo a sensação de sua grandeza e da grandeza de Quem o fez.
Os colegas cozinheiros permaneciam nos seus pés para preparar a comida - iam prontos: o arroz, o feijão, tomate inteiro, picado na hora, farofa e carne em forma de almôndega ou cozida. Levávamos os talheres, pratos e canecas de alumínio - ainda não existiam os de plástico.
Cada um tinha seu cantil com água e um casquete para se proteger do sol – hoje são os bonés.
Começava a subida, pela parte traseira, em fila indiana, e o chefe à frente.
Sempre apressado e afoito para essas coisas, procurava ir à frente, inclusive conversando com o chefe - assim chamado o colega mais velho que puxava a fila - mais experiente e, assim, andando, observando e tomando conhecimento de coisas novas. Normalmente, é bom aproveitar a oportunidade e descobrir que mais e mais todos nós temos coisas a aprender.
Cada vez mais íngreme o caminho, despontando um horizonte de cinema. Num certo trecho, a trilha bifurcava. O chefe por uma, alguns poucos colegas e eu por outra. Resultado: saímos bem à frente do chefe e seus seguidores. Jovens e afoitos, com a satisfação de estarmos à frente de todos, resolvemos apressar os passos, morro a cima - para não nos perdermos era só olhar para o alto e seguirmos; aliás, não tinha como se perder, só subir e subir, chegava-se ao cimo do monte.
Encimando o Pico do Itabirito, duas pontas, cá de baixo parecem pequenas - são morros altos. Num raio de 50 km, ou mais, vê-se puro minério de ferro. Passando pela BR 040, Rio-Brasília, observam-se as pontas e o minério da região.
Chegando ao alto, antes de todos, parti para uma das pontas, a maior das duas. Uma vista maravilhosa, dando a impressão de perceber até a curvatura da terra. Em baixo, a fila indiana, com mais de 150 colegas e, no final, talvez ainda no meio do caminho, o Padre Diretor - Padre Marcos Gabiroba.
Dei um assobio; não sou muito bom nisso, mas saiu às mil maravilhas. Com o eco da serra, o Padre Diretor escutou - pude perceber, olhou para o alto.
Apesar de longe, alguém deve ter falado para ele que era eu. Determinou, ordem imperativa mesmo, e o pessoal foi gritando morro a cima:
- Benedito, fique de joelhos aí, com os braços abertos, até que eu chegue!
Gente, como meus joelhos doeram!...

066 - Assombração

Pelos quinze anos, passava férias na Casa de Campo...
Casa de Campo, onde os internos passávamos as férias, quando estudávamos em um internato em Congonhas, MG – Juvenato São Clemente Maria, dos Padres Redentoristas.
Estudávamos de oito a nove horas por dia. Três semanas de férias em maio e em setembro; após o dia vinte de dezembro ao final de janeiro, também íamos para a Casa de Campo, aos pés da Serra de Ouro Branco – caminhávamos a pé, umas três léguas, distância calculada pelos colegas da roça. Não passávamos férias nas casas de nossos pais. Arrumávamos as trouxas – iam de caminhão – colocando as roupas necessárias para todas as férias – roupas diárias iam semanalmente.
Havia dois campos de futebol, dois de vôlei e duas piscinas. Instalações simples e a comida ótima e farta. Um salão que servia de refeitório e sala de recreio e uma capela onde assistíamos à missa diariamente. Nunca fui bom nadador, mas aproveitava, e muito, os outros esportes.
Nessas ocasiões passeávamos subindo a Serra de Ouro Branco, acampando durante o dia. Lá em cima, além da maravilhosa paisagem e vista quase a perder de vista, chapadões, onde imperam – imperavam! – as canelas de ema, e um córrego, assim como uma linda e perigosa cachoeira na parte de trás.
Nos terrenos da Casa de Campo passava um ribeirão, cuja nascente é exatamente a do córrego de cima da serra. Esse córrego, um pouco antes da Casa de Campo, atravessava um sulco profundo, talvez de vinte a quarenta metros, cavado por ele entre as pedras de calcário existentes por lá – nós o chamávamos de garganta ou funil; atravessá-lo era um bom desafio e um agradável e longo passeio, quiçá uns quinhentos metros de pedras desalinhadas e forte correnteza da água, além do frio. Maravilhoso! Tudo isso, atualmente, fica debaixo d'água da represa construída pela metalúrgica Açominas para captação de água industrial e potável.
Um dos passeios preferidos era nas grutas atrás da serra – interessantíssimas, grandes e lindas, com os maravilhosos salões coloniais, decorados com estalactites e estalagmites de diversos tamanhos e formas – não perdem em beleza e tamanho para a gruta de Maquiné ou Lapinha. As companhias, donas do local, fecharam os caminhos das grutas, com a anuência e tolerância da Prefeitura local – Ouro Branco ou Ouro Preto. Proíbe-se o povo de desfrutar as belezas de um bem público – como retiram calcário do local, é bem provável, se nenhuma providência for tomada, que aconteça o que tem acontecido com muitas delas nas nossas minas gerais: virarão pó, para a agricultura ou para a siderurgia!

Numa das férias, acometeu-me uma terrível dor de dentes. A bochecha inchou, inflamada. Tendo aparecido um carro, coisa rara naquele tempo, deixaram-me ir para Seminário, em Congonhas, procurar um dentista – dentista prático, o que havia. Fiquei só, no imenso internato, pois seria atendido somente no dia seguinte.
O dormitório, no extremo esquerdo do segundo andar. Eu, naquele mundão. A luz elétrica, em dias alternados para cada lado da cidade. Nada de luz naquele dia, ou melhor, naquela noite. 
Achei alguma vela e resolvi dormir na enfermaria, mais aconchegante – no extremo direito do primeiro andar.
Deitei-me. Difícil dormir com a dor e, quando enfim o sono chegava, percebi algum vidro de uma das janelas quebrando ou sendo quebrado. Pensei logo num ladrão. Mas ladrão para roubar o que naquele lugar? Bons tempos, quando ladrão era coisa raríssima.
Quase todo o prédio era de piso de madeira. Percebi passos ao longe. Poder-se-ia adivinhar mais ou menos onde. Talvez alguém no dormitório... Encontrava-me só, tinha certeza – dor, sono, cansaço, escuridão e solidão inventam coisas...
Nunca tive medo de nada, e, apesar da dor e das noites mal dormidas ou mesmo passadas em claro, dormi.
Pelas tantas da noite acordei assustado com barulho de passos no andar de cima. Estranhei, pois afinal pensava estar só no prédio.
Alguém vinha em direção ao lado direito do edifício – para o meu lado. Ouvi cada passo, descendo a escada. Parava... descia... e foi aproximando-se... aproximando-se... até chegar perto do corredor principal.
Com medo ou receio e a escuridão total, deu para ver, através da fresta da porta, alguma luz vindo – nessas horas, dois lumens viram dois mil! Cobri-me todo. Eu ofegante e a luz mais perto, os passos também. E a luz aumentava. Lentamente, caminhou todo o corredor principal. Entrou no pequeno corredor da enfermaria. Foi chegando... pelo caminhar, alguém avizinha-se da porta... pegou no trinco torcendo-o... devagarzinho... e eu meio suado – meio suado que nada, todo suado... e suor frio!
Lentamente abriu-se a porta. Dei uma olhadela e... o que vejo? – uma assombração com seu lençol alvíssimo e um lampião a vela numa das mãos! Pude comprovar que lençol de assombração é realmente branco, branquíssimo, e meio transparente!
Enrolei-me todo no cobertor... encolhi-me o máximo. Fazia frio, e eu mais frio ainda, e ele aproximando-se da cama... Alguns segundos viram horas. Eu na posição fetal... Cutucou-me! Gelei-me. E murmurando:
- Sa-be on-de tem mais co-ber-tor?... (acho que com mais medo que eu!)
Demorei-me um pouco a entrar na realidade.
Que alívio! O Gentil, um colega, enrolado num lençol, por causa do frio. Tinha vindo depois de mim, chegou à noite e, como não possuía chaves, quebrou uma vidraça, de uma das muitas janelas, e entrou.
Acabamos dormindo, os dois, na enfermaria.
Naquela noite, além de terrível, terminei dormindo com uma assombração!
E o lençol não era branco!... E nem lençol!... Era um cobertor xadrez!... E xadrez escuro!...  
Medo faz coisas! Acreditem!

067 - A Guerra

            Em Congonhas, MG, os estudantes passávamos as férias numa Casa de Campo, aos pés da Serra de Ouro Branco, um paredão colossal de pedra - emoldura um dos lados da cidade de Ouro Branco.
            Dois padres acompanhavam-nos: o Padre Diretor ou o Padre Sócio, tipo vice-diretor, responsável direto pelos internos, e um professor - companhia para o padre e para nós, alunos. O professor que mais gostávamos que nos acompanhasse, um holandês simpaticíssimo, magro e alto, muito branco, com um bom português. Regente dos coros, o diretor do teatro - além de dirigir as peças, mostrava-se um grande artista, pintava os cenários - ajudava-o. Meu professor de desenho e pintura. Chamava-me de O Egípcio, por eu gostar de desenhar e pintar telas grandes. Era o Padre Anselmo.
            Praticávamos esportes os mais diversos. Futebol, vôlei e basquete, os que mais apreciava. Nas piscinas nadávamos quase o dia inteiro, mas nunca fui grande amante de natação e muito menos exímio nadador - muito frio por lá.
            Passeávamos pelos matos da redondeza à procura de gabiroba e cabacinha, assim como de outras frutas do mato - nas férias de fim de ano essas frutas eram normais e fartas. Arrancávamos o pacheco (ou jucatupé, ou ainda jacatupé, ou até mandioca doce, como o chamam alguns); raiz de um pequeno arbusto bem diferente do pé de mandioca, mas de raiz bem parecida - muito apreciada por nós. Pegavam-se os animais encontrados  - cobras, rãs ( jias), aranhas, jaratataca, tatus etc.. Os venenosos enviados para o Butantã em São Paulo. Alguns - rãs, tiús, gambás e tatus - consumidos e outros embalsamados para o pequeno museu. Nem todo aluno poderia pegar um animal encontrado - só alguns autorizados, eu entre eles.
            Ao entardecer, acionava-se um pequeno motor a gasolina, funcionando com seu barulho característico, até o Padre dar o último sinal com a campainha, para dormirmos; ainda hoje me vem à memória aquele bater dos pistões do pequeno motor.
            Após o jantar, luz fraca, e só na casa. A varanda e o refeitório serviam de sala de recreio, onde jogávamos baralho e contávamos nossas histórias e estórias diárias e as saudosas de nossas casas e famílias, contávamos nossas potocas (conversas fiadas). Os que comeram farinha, ou iriam comer, era um assunto comentado à surdina (comer farinha é o mesmo que sair ou ser mandado embora do seminário). Praticávamos alguns jogos, como o quebra-cabeça, a dama e o xadrez - havia até mesmo um bilhar – com bolas de marfim.
            Rodeávamos o professor, misto de contador de histórias e companheiro naquela solidão. No lusco-fusco das lâmpadas e na escuridão total lá fora, quebrada apenas pelas luzes dos vaga-lumes e sonorizada pelos cricris de grilos vários e os incontáveis e variados coaxares de sapos e rãs – com sua orquestra harmônica quebravam a monotonia.
Contato com a civilização uma ou duas vezes por semana, quando por lá aparecia um carro.
            Padre Anselmo descrevia-nos os anos passados no seminário na Holanda, situado à beira de uma importante rodovia, justo no período da Segunda Guerra Mundial. Meninos e jovens arrepiávamos os cabelos e arregalávamos os olhos diante da real e dramática descrição de dias e anos daquela guerra terrível - ouvíamos ávidos, sentindo calafrios.
            Os que declaram, administram e comandam as guerras ficam em confortáveis gabinetes em seus países - no final, os heróis.  Na verdade, os heróis ao longe: o povo morrendo nos combates ou em suas conseqüências. A história, uma fábula, ou, um relato tendencioso, sobre a qual poucos discordam.

            O jovem seminarista Anselmo, magérrimo, depois de anos passando fome e sede, foi comunicado que a mãe estava prestes a falecer, no norte da Holanda. Desejava visitar a mãe. Os superiores arranjaram-lhe um passaporte - uma licença especial para viajar até onde se encontrava a mãe. Muito magro, magreza acentuada por ser muito alto. Imaginem-no durante a guerra, quando nem sempre tinha o que comer! Pois bem, ao chegar ao norte, todo mundo, admirado, olhava-o. Perguntou a um parente o porquê de tamanho assombro. Recebeu a explicação:- Você está muito gordo para nossos padrões atuais: somos um povo faminto e esquelético.
            As árvores sem folhas e casca, arrancaram-se até mesmo capim e grama - serviram de alimento para o povo. Ratos, baratas, e todo e quaisquer insetos, disputados e comidos. Uma paisagem dantesca - desoladora e aterrorizadora... um deserto de terra úmida, esqueletos de árvores e de gente!
            Um irmão do Padre Anselmo, perseguido pelos alemães, correu daqui, correu dali, entrou em um galpão, cheio de máquinas e alimentos - um antigo armazém. Encontrou um barril. Abriu-o. Pulou dentro e, imediatamente, puxou a tampa para encobri-lo... O barril, um depósito de ovos, com ovos pela metade. Só que... antigos e totalmente podres!
            Imaginem todos aqueles ovos podres e quebrados por ele...  e ele lá dentro sem poder abrir o barril. Os perseguidores, sentindo o odor, passaram rápido pelo local.
            Preferiu o terrível cheiro, a ser morto pelos alemães.
            Nunca tantos ovos lhe fizeram tão bem!... E podres!
            O mesmo irmão do Padre Anselmo foi ao campo de batalha. Ferido, caiu numa poça de sangue, ao lado de um soldado que acabara de falecer, de quem ainda escorria sangue.
            Chegou um soldado alemão, costume durante a guerra, para o tiro de misericórdia - um tiro em cada um dos mais feridos para que não sofressem muito, pois o socorro pouco e mal. O soldado olhava para o ferido, uma cutucada com a ponta da baioneta, e um bom ferimento. Se mexesse, sinal de vivo - tomava um tiro na cabeça. Se inerte, economizava-se o tiro.
            Baioneta é uma arma branca que se adapta à boca de um fuzil ou mosquetão.
            O irmão ferido, mas nem tanto, quando percebeu a aproximação do soldado alemão, fez-se de morto. A baioneta enfiada em um dos joelhos, quase lhe arranca a rótula. Retesou os músculos, controlou o gemido e o grito de dor -  dor é sentida quando se tem a sensação de dor - não a tendo, ou se esforçando para não tê-la... O alemão, na pressa de acabar logo o serviço, no campo de batalha muitos feridos, passou para outro, pensando que aquele cliente realmente morrera.
         Interessante que os alemães e, posteriormente os americanos, respeitavam muito o seminário e os seminaristas. De quando em vez os alemães faziam buscas totais pelo colégio, onde, muitas vezes, era possível proteger alguém que se escondia, principalmente judeus.
  
            Quando os americanos entraram na Holanda avisaram aos holandeses para se abster de se manifestar, pois os inimigos fariam o mesmo, disfarçando-se e, com isso, poderiam atacá-los.
            Em frente ao seminário havia um senhor, fazendeiro, muito amigo dos seminaristas. Estes, do interior do prédio, olhavam pelos vidros das janelas, observando os americanos e os tanques passarem. Apareceu o fazendeiro na varanda superior da casa e começou a pular com os braços abertos, externando toda a alegria pela presença dos americanos, antevendo o fim próximo da guerra. Um tanque americano virou-se em sua direção, disparando sobre ele e a linda casa um tremendo tiro de canhão - ele sumiu no enorme buraco que a bala fez na casa, quase a destruindo por completo.
            Tiveram pouca coisa para enterrar do pobre e inocente fazendeiro.
            Na guerra... quem é o mocinho e quem é o bandido?... O povo é o sofredor.
            Isso é a guerra, tão bem narrada e dramatizada pelo inesquecível Padre Anselmo...

068 – Regra de três

Quando fui para o Seminário, Juvenato, de Congonhas, alguns meses depois, tivemos uma aula de matemática - versava sobre regra de três. Para demonstrá-la na prática, fomos para a frente do Santuário do Senhor do Bom Jesus, para medirmos as alturas das palmeiras lá existentes – quando o Padre Professor nos disse que iríamos medir a altura das palmeiras, não acreditei. Medimos o comprimento da sombra de um metro. Medimos o comprimento da sombra da palmeira. Descobrimos então as duas medidas das sombras, mais o metro, e com essas três medidas montávamos uma regra de três: o resultado era a altura da palmeira. Achei interessantíssimo!
         Nessa ocasião conheci as sessenta e quatro imagens dos Passos, em cedro, pintadas pelo Athayde, e os doze Profetas, em pedra sabão - todas as peças esculpidas pelo Aleijadinho. Vários colegas riscavam seus nomes nas estátuas de pedra sabão – nunca o fiz, embora sentisse que se dava pouca importância para aquela arte barroca. Dois ou três anos depois, demoliram o antigo convento para construir o atual situado atrás do Santuário, conservando somente a admirável entrada esculpida em pedra sabão – hoje isso não aconteceria. Ainda bem que, logo a seguir, começaram os estudos pra valer das imensas e maravilhosas obras do Aleijadinho.
         Infelizmente as estátuas de pedra sabão continuam no tempo e suas intempéries. Nos países adiantados, as obras de arte, que ficariam ao relento, são guardadas e colocadas réplicas em seu lugar de origem. Outro dia fui a Congonhas e vi os Profetas. Decepcionei-me, lembrando-me de quando e o quanto admirei a obra prima do Aleijadinho pela primeira vez. Até o Profeta Daniel, a mais espetacular escultura do Aleijadinho, sofre as conseqüências da burrice congonhense, ou governamental, em não querer proteger obra tão importante, não só para nós brasileiros – é um patrimônio da humanidade.
        
         Na década de 60 o MAM do Rio desejava levar as estátuas dos Passos para uma exposição. O povo de Congonhas se uniu e proibiu que as retirassem. Foram substituídas por obras do maior artista uruguaio e dos maiores das Américas. Com a responsabilidade característica de nossos dirigentes, o MAM pegou fogo e o povo uruguaio perdeu seu tesouro e a humanidade um de seus patrimônios – colocaram a culpa no Abreu...
         Mais uma vez o povo de Congonhas se una para proteger o seu – o nosso! - patrimônio!... E que o Senhor Bom Jesus nos proteja de nossos dirigentes... e nos abençoe!

069 – Tinteiro

         No Seminário, quando entrei, eu menino, em mil novecentos e antigamente, usava-se caneta de tinteiro. Hoje em dia, além das canetas esferográficas, os meninos escrevem mais a lápis, ou usam a lapiseira.
Em cada carteira, individual, havia um tinteiro. Quando a tinta acabava, um colega enchia-o – normalmente ele executava essa tarefa antes de a gente chegar à sala de estudos. Nas salas de aula também havia tinteiro para cada aluno. A gente menino, ao escrever, apertava muito a pena estragando-a constantemente – era só pedir outra que o padre arrumava.
As canetas de luxo eram as Parkers: a prateada, a P21, e a de ouro, a P51. Acho até que havia a P71, a de ouro com diamante nas pontas – duas – da pena ou algum incrustado em seu corpo. Com uns doze anos, achei na rua uma P21, pouco antes de ir para o Seminário – sucesso entre os colegas.
         A cor normal da tinta era o azul, mas havia também as tintas coloridas, sendo o vermelho e o preto as cores mais comuns. Com o tipo de pena normal, de aço, nas aulas de caligrafia, eu consegui escrever letras tão pequenas, que até o Padre Marcos Gabiroba, que nunca me topou, admirou-se.
          Em Congonhas, em meados de setembro, anualmente, o Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos – dura uma semana, normalmente de 07 a 15.
         Durante essa festa, montam-se barraquinhas nas principais ruas da cidade, principalmente a que leva ao Santuário. Vende-se de tudo. Bugigangas são as preferidas dos peregrinos - um verdadeiro paraguai.
         Todos os anos os padres, no final do Jubileu, presenteavam-nos, os seminaristas, com um cruzeiro.  Tínhamos algumas horas para percorrer as barraquinhas e comprar algo. Naquele ano o presente dobrou para dois cruzeiros. Éramos divididos em duas turmas para sairmos à rua. Eu, muito gripado, não me foi permitido sair. Ao chegar a primeira turma, os colegas traziam algumas novidades, como a caneta esferográfica e a meia de nylon – usávamos canetas tinteiro e meias de algodão.
         Pedi a um colega para que comprasse para mim canetas esferográficas azul - a que comprou - vermelha e preta, para eu desenhar. A turma que me rodeava zombou de mim chamando-me de bobo:
         - Cê num viu que dessas aí só inventaram canetas azuis?
         - Se não achar, compre-me uma dessas meias novas que a gente lava e seca logo!
Só no ano seguinte consegui as canetas coloridas... e as meias de nylon idem!
071 – Sô Leandro
À noite, na casa do Sô Leandro, na rua da Serraria, tinha eu as primeiras aulas e noções de música. Adorava escutar e seguir a banda do Sô Leandro, talvez por eu ser neto do Sô Pedro Araujo, tocador de tuba. Vovô Pedro formava um conjunto perfeito com a tuba: os dois parrudos e do mesmo tamanho!
No Seminário, quando entrei para o primeiro ano, fiz antes o admissão, pedi para entrar nas aulas de piano ou harmônio e não consegui. Em capas de cadernos desenhei um teclado; colocava-o em cima da carteira e tocava, ou melhor, dedilhava minhas supostas músicas. Padre Lima, que me vetara para aprender piano ou harmônio, encaixou-me numa aula de harmônio com o Padre Penido. Dom Lara e o Padre Henrique foram também meus professores.
Tomava parte no coro e na Schola Cantorum, especializada em canto gregoriano,uma turma dos doze melhores cantores.
Na banda de música, a furiosa, tocava saxofone, em mi bemol – aquele reto - mas gostava de experimentar todos os seus instrumentos ou regê-la de quando em vez.
Em casa tenho um piano que foi do Seminário, que os Padres Redentoristas deram para a Deuzinha, minha irmã, e ela passou para mim. Esse piano, francês de 1932, tem cepo de madeira, um som suave e doce – tipo do que Beethoven aperfeiçoou – pode ser desmontado em segundos -  uma jóia, mas desafina fácil, principalmente com a umidade na época das chuvas.
072 - Qui bene cantat, bis ora!
           Quando tinha uns sete ou oito anos, Padre Deolindo chamou-me para ser coroinha e ensinou-me as respostas da missa - tudo em latim.
            Eu papagaiava meu latinorum, sem mesmo entender que havia o latim ou outro idioma. Graças a Deus que o Papa acabou com latim da missa!
            Indo para o Seminário de Congonhas, nos sermões, ouvia duas frases constantes e marcantes: uma era essa de Santo Agostinho (354-430 aD), pois logo fui ser cantor no coro orfeônico: Qui bene cantat, bis ora - Quem canta bem reza duas vezes.
   Na leitura do latim, a consoante final de uma palavra se liga à vogal inicial, se a houver, da palavra seguinte. Ouvia a frase de Santo Agostinho... e aquele bisora (bis ora) não me saía da cabeça. Como o Padre não traduzia, todos, menos eu, entendiam - ficava eu grilado e procurando saber o que tinha a ver cantar com besouros! Pelo menos se fosse grilo!...
        A outra era a frase de Santo Afonso Maria de Ligório, fundador da Congregação Redentorista - um dos sábios Doutores da Igreja, cujos livros já tiveram mais de um milhão de edições: Quem reza se salva, quem não reza se condena.
         Numa das visitas que mamãe me fez, levou-me um belo livro, Meditações, escrito por Santo Afonso. Nesse livro, o inferno é descrito e pintado com cores tão vivas que eu até tremia e me arrepiava quando lia algumas dessas meditações – com meus pecadinhos juvenis, chegava a sentir um pouco o calor do fogo do inferno.
073 – O latinorum da missa!
         Em mil novecentos e cinqüenta e pouca coisa, o Papa Pio XII acabou com o latinorum das missas e das liturgias da Igreja. Aliás, obrigou-se o Padre a celebrar a missa em sua língua pátria. Parece-me que hoje permite-se rezar missa em latim –  eu gostaria de assistir a uma dessas!
         E não era só a missa em latim, com o Padre dando as costas para o público, que o fiel deveria suportar: havia também o latim do batizado, da extrema unção ou da encomendação fúnebre, da crisma e de tudo mais da igreja.
         Para a gente comungar, deveria ser em jejum absoluto – já viu que missa à noite não havia, só até ao meio-dia! E não se podia tocar na hóstia e muito menos tomar o vinho, como hoje acontece muitas vezes.
         E ainda diziam pra gente que as rezas em latim, só de ouvi-las, valiam mais que as rezadas em português! Dá pra entender?... Nem a ordem e muito menos o latinorum!
         No Seminário eu falava para os padres que preferia rezar em português.
          O Carioca, irmão de nosso colega Hélio Athayde – mais tarde Padre Hélio -, jogava futebol no Clube Guarani de Juiz de Fora - só porque morava em Juiz de Fora, tinha esse apelido – é muita pretensão desses juiz-foranos, não acham? Aliás, dizem eles que, quando jogam bola no quintal de casa, se o chute é um pouco forte, ela acaba caindo na praia de Copacabana... Dá pra agüentar esses caras, dá?...
         Como profissional, o Carioca ficou conhecido e amigo do Flávio Costa, treinador da Seleção Brasileira e do Vasco da Gama, na época o maior e melhor time do Brasil – entre seus jogadores havia o Belini, Almir, Orlando, Vavá. Tempos bons em que o técnico da seleção brasileira tinha um clube para dirigir – hoje – vox populi - corre tanto dinheiro que técnico dirige só a seleção e é dirigido pela CBF,  pelos patrocinadores e por clubes da Europa.
         Flávio Costa passou alguns dias de férias em Congonhas e lá se encontrou com o Carioca – que lhe servia de cicerone.
         No Seminário preparávamos para jogar contra a seleção de Congonhas e região. Em nossos treinos apareciam por lá o Carioca e o Flávio Costa, que até nos ajudava com algumas instruções técnicas. Ganhamos o jogo!             
         Tínhamos um grande goleiro, o José Agostinho. Um dia o Flávio Costa resolveu ensinar-lhe alguns macetes, jogando-lhe a bola com as mãos. Eu brinquei com o Flávio Costa dizendo-lhe que, se eu fosse o goleiro, ele poderia jogar mil e uma bolas que eu pegaria todas. Ele aceitou o desafio. Jogou algumas, e como viu que eu pegava mesmo, desistiu, sorrindo muito e dizendo que eu seria um bom goleiro reserva de seu time. Quando soube que eu sairia do Seminário naqueles dias, falou-me para eu procurá-lo no Vasco. Quando cheguei a Fabriciano, contei para papai, mas ele não se interessou – e eu também não sabia avaliar o quanto seria bom eu ir para o Vasco da Gama do Rio de Janeiro.
075 – Os craques!
           Quando entrei para o Seminário de Congonhas, um antigo fabricianense, o Savernini, era considerado um craque de bola – eu também.
         O Ivan Rolim era o craque mirim. O Irnac, irmão do Ivan, também era bom de bola. Outro bom de bola era o Ilton Quintão.
         Alguns seminaristas vindos da região de Fabriciano – Acesita, Jaguaraçu e Mesquita – quando não ótimos jogadores de futebol, pelo menos bons eram considerados.
         Resultado: tinha-se em conta Fabriciano e região como um bom celeiro de craques do futebol.
         Ilton Quintão é um empresário bem sucedido no ramo de comércio.
         Ivan Rolim é médico ortopedista, casado com a Maria das Graças, cardiologista – a médica de papai por alguns anos. Quando papai tinha que fazer algum regime e recusava, recorria-se à Gracinha e ele aceitava suas recomendações.
         O inteligentíssimo Irnac Rolim foi, ou é, o maior jogador de xadrez que conheci. Havia um engenheiro da Usiminas todo entusiasmado porque ganhou um torneio em Ipatinga. Seu entusiasmo era tanto que andava com um jogo de xadrez a tiracolo. Ele ia muito ao Laboratório Franco, onde eu trabalhava, e a gente batia um bom papo. Falei-lhe sobre o Irnac e logo se interessou em conhecê-lo. Fomos à Farmácia Rolim, onde os dois disputaram algumas partidas. O Irnac ganhou todas fácil, fácil - e o cara sumiu.
076 - A Carne
No internato éramos obrigados a comer de tudo servido na mesa, nem que fosse uma porção mínima – uma colher de arroz ou feijão, por exemplo. Nunca tive problema em comer algo. Alimentava-me de tudo – se fulano come, eu também como.
O cozinheiro do Seminário era um holandês - o Brodão, um irmão leigo grande e gordo. Ele preparava uma carne com gelatina, gelada e super azeda, assim como um cozido de folhas de beterraba vermelha: dois pratos intragáveis. O arroz com bacalhau era apreciado por todos. O arenque seco “pouco católico” – suportava-se! Nos dias de festas, distribuía-se uma garrafa de cerveja para três estudantes – os padres tomavam diariamente - cerveja fabricada lá mesmo.
Na Casa de Campo, onde passávamos as férias – não tínhamos férias nas casas de nossos pais – encontrávamos e pegávamos muitos animais, entre os quais o gambá, teiú, jia e tatu, saboreados pela turma que os pegou. Como o terreno por lá era muito pedregoso e ruim - cascalho por todo lado – para se plantar algo, era necessário cavar um buraco de uns 80 cm x 80 cm e enchê-lo com terra estercada. A quem furasse e fizesse esse plantio, o Padre dava uma garrafa de cerveja – já perceberam que eu nunca ganhei uma...

No Parque de Exposição de Lafaiete, houve um ano em que os churrasquinhos foram ditos de carne de cachorro e gato. A polícia teve até que intervir, de tão fragrante estava a coisa.
Um meu vizinho saboreou todos os gatos da região; uma vez inclusive, levou-me um bife, jurando de pés juntos que não era de carne de gato. Desconfiado, achando-o meio duro e escuro, comi – nada apetitoso... e nem assustador.
Hoje posso afirmar que era carne de gato! Mas comi como se não o fosse.
          Fim de ano no Seminário, os seminaristas éramos nomeados para algumas “profissões” durante o ano seguinte.
         Todos os anos indicavam-me para desenhista. Os desenhistas escreviam faixas, desenhavam programas de festas, alguns desenhos ou pinturas na capela ou para as peças de teatro.
         Três os sacristãos: o primeiro era o Luciano, Dalton o segundo. Comecei pelo terceiro, e segundo no ano seguinte.
         Fazia parte do pessoal que podia pegar os animais para o museu de história natural do Seminário. Os animais peçonhentos, venenosos, não colocados no museu eram enviados para o Instituto Butantã em São Paulo. Durante as férias na Casa de Campo, íamos coletando as cobras e as colocando em caixas enviadas pelo Butantã e no final, em um pátio interno, soltávamos as cobras e alguns sapos para elas comerem. Os meninos mais novos debruçavam-se no parapeito da varanda e se admiravam de eu estar ali no meio daqueles bichos pavorosos para alguns.
         Era bom nos esportes – acho que exceção na Família! – principalmente futebol, mas também pertencia ao time de basquete e vôlei. Meu neto, o João Pedro, é muito bom no futebol e natação; já o Luis Filipe é um canhoto craque no futebol!
         Nos passeios, principalmente nas grutas e serras, era bastante destemido – topava tudo!
         Desenhista, sacristão, museu, pegador de bichos, organista – no esporte futebol, vôlei e basquete – gostava de me aventurar em tudo...
          O dormitório, a sala de estudos e a capela do Seminário em Congonhas localizavam-se no segundo andar.
         Antes de cada aula tínhamos meia hora de preparação na sala de estudos e depois descíamos para a sala de aula, passando por uma escada em que, em uma de suas paredes laterais, havia uma estampa de São José. Não sei o porquê, talvez a falta do pai, essa foto de uma pintura, famosa na Europa, impressionou-me desde quando deparei com ela pela primeira vez –, via-a muitas vezes ao dia, e cada vez a achava mais interessante e cheia de detalhes.
         Um São José já meio velho, de barbas longas, carregando um Menino Jesus belo e meigo, de talvez um ano, bochechas rosadas, cabelos loiros e cacheados – num sorriso de satisfação, penso que por estar seguro no colo do pai. Do lado esquerdo, em suas mãos, um pé de lírio, com alguns.
         Em Lafaiete, minha loja era em frente à Igreja São João – igreja de linhas simples, porém imponente e bem construída, com uma torre bem alta. Sempre desejei visitar a torre, e externava esse meu desejo para as pessoas que ajudavam na Igreja.
         Dona Geni, a melhor colaboradora do Padre Cornélio, convidou-me a visitar a torre. O primeiro andar após o coro serve de depósito de quadros e restos de decoração da Igreja. Jogados no meio dessa bagulhada, duas estampas antigas, emolduradas simplesmente, encostadas num canto: um São José e um Sagrado Coração de Jesus. Interessei-me pelos quadros e Dona Geni pediu ao Padre Vigário que me desse o Sagrado Coração. Depois de algum tempo ela renovou o pedido e recebi o São José.
         O São José era igual ao encontrado na escada do Seminário, a estampa, bem maior, um pouco rasgada e a moldura quebrada. Restaurada, e com nova moldura, coloquei-a no meio de minha escada – descendo, ou subindo, passa um mundo de lembranças boas...
         Estampas alemãs, de 1932, e no rodapé impresso “Sagrado Coração de Jesus” e “São José” em sete línguas.
                No Seminário havia vários irmãos leigos redentoristas: o fazendeiro, que cuidava da chacrinha; o cozinheiro - o Brodão; o irmão Inácio – o Brodinha - o maior colaborador dos alunos, pois era o enfermeiro, o ropeiro; o responsável pelo refeitório e auxiliares de arrumação em todo o Seminário; Irmão José o único brasileiro, holandeses os outros - apareceu mais tarde, ajudante do Irmão Inácio. Com todos eles eu me dava muito bem, mas o que eu mais admirava era o Irmão Bonifácio: humilde, educado e cortês; diziam até que era ele um engenheiro ou arquiteto. Vivia em sua carpintaria fazendo artes – um artista nato, um gênio. Substituía, de quando em vez, o Irmão Inácio, e dava aula de piano. Irmão Bonifácio: um santo irmão, um sábio santo e um gênio generoso! Como foi bom conviver com ele e ter sua amizade!    
080 - Canto Gregoriano
                Eis o Canto Gregoriano! Muitas vezes chamado de Canto Chão, embora haja uma pequena diferença entre eles.
            -  Perceba, escrito sobre quatro linhas -  tetragramas -  enquanto que a música polifônica, a escutada normalmente, são cinco as linhas.
            -  Cada nota dura apenas um tempo – equivale a uma semínima na polifônica (meio tempo) -, a não ser quando é seguida de um ponto, durando então dois tempos. Toda nota é quadrada (ponto quadrado - punctum quadratum - ou ponto inclinado - punctum inclinatum); podem ser simples ou agrupados em neumas. Na polifônica é arredondada, ou redonda, podendo durar de um dezesseis avos (1/16) a quatro(4) tempos.
            -  A barra inteira divide os compassos. Repare, os compassos não têm número de tempo definido (o último compasso tem quase oitenta tempos), logo, não é uma música quadrada, como a polifônica, onde cada compasso tem sempre a mesma quantidade de tempos e também é dividido por uma barra, sendo a duração indicada no início da música. Por exemplo: a marcha tem dois tempos e a valsa três - em cada compasso.
            -  A barra menor serve principalmente para respiração, quando se canta em coro, isto é, alguns cantores podem respirar, pois o compasso deve ser cantado sem pausa.
            -  As claves podem ser de "dó" e de "fá", colocadas em qualquer linha - isso, muitas vezes, evita que as notas sejam escritas fora das linhas - pode até acontecer, mas não é muito comum. Já na polifônica é freqüente.         
             - Normalmente as composições são da idade média - em seus primórdios, a música tocada por David em sua harpa, mais ou menos um milênio antes de Cristo.
            - É uma música vocal, cantada em uníssono. É muito mais bonita à capela, isto é, como se canta na Capela Sistina - a Capela do Papa no Vaticano - sem acompanhamento.          
Benedito Franco
Av. Santa Matilde, 291 – B. Santa Matilde
Conselheiro Laffaiete – MG

031 3762 5768

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