Após o almoço todos tínhamos o dever de estar no barracão de recreio, ali havia quase todos os tipos de divertimentos: dominós, baralhos, ping pong, bilhar, sinuca, xadrez, dama , trilha , gamão ; todos distribuídos pelas várias mesas. Logo na minha primeira semana de Seminário de Santo Afonso em fevereiro de 1973 procurei me adaptar às regras da nova casa: agora em seminário dos maiores. Sentiria talvez saudades dos anos na cidade de Tietê, lá do seminário dos menores... ali em Aparecida parece que a responsabilidade era mais exigida, afinal estávamos cursando os três últimos anos antes de ingressar na faculdade. Parecia-me no entanto que ali também valiam algumas regras comuns que seguíamos no Seminário de Santa Terezinha: havia os novatos e os mais velhos. Bem diferente do que acontecera nos primeiros dias de quando entrei para o Seminário, ali no Santo Afonso já estava mais adaptado à vida comunitária, fundamental para todos os missionários redentoristas. Nos primeiros dias já conhecia todos os padres e os novos amigos. No barracão de jogos, circulava entre as mesas e percebi que ao redor de uma delas formara -se um pequeno grupo compacto de torcedores . Aproximei-me. Havia um padre jogando dama com um seminarista. Quando esse perdia dava seu lugar para outro sob as ovações de apoio e críticas dos companheiros. Ninguém conseguia vencer aquele padre. Eu, raramente perdia uma partida de dama. Poderia tentar, afinal não tinha nada a perder. Entrei na fila. Alguns amigos se aproximaram para assistir ao combate ou a derrota. Parecia que esse tal padre era dos bons e impunha respeito. Chegou a minha vez. Sentei-me diante dele. Ele me olhou por cima dos óculos, franziu a testa e pediu prá que eu começasse. Pensei com meus botões: “ Esse padre deve ter um cargo importante pois todos se portam diferente diante dele e mantém certa distancia respeitosa" mas todos estão perdendo pois usam de jogadas clássicas no início dos jogos de dama e o padre só faz também armar armadilhas clássicas. Farei diferente, fugirei da mesmice e partirei para toques sem nenhuma conexão obrigando o padre a sair de seu “status quo” e não lhe darei tempo de pensar em fazer nenhuma jogada de ataque... iniciei a partida e, aos poucos vi o padre franzir os olhos e me olhar por sobre os óculos e coçar o queixo. “Bom sinal” pensei, “ele sabe que diante de si tem um jogador mais esperto”. Continuamos o jogo e aumentou o grupo da torcida ao redor da mesa. Olhei nos olhos do padre e não gostei do que vi: estava sério demais e havia a ameaça de um sorriso bem na linha em um lado da sua boca. Isso era sinal de que ele estava muito confiante e só aguardando a chance de dar o golpe fatal... afastei o corpo da mesa e, tentei imitar o padre: coloquei também a ameaça de um sorriso no canto da boca e o encarei e disse: “Não sei quem é o senhor, padre, mas comigo será diferente... fique na sua porque não jogo prá perder!”. A torcida caiu na gargalhada e alguns se ajuntaram atrás de mim, outros vendo que eu me colocava a altura do padre também se juntaram aumentando o bloco de torcedores. Conduzi as jogadas com mais lentidão sempre fugindo daquilo que o padre estava acostumado a jogar...mas aquele “bendito” sorriso que não saía do canto de sua boca começou a me perturbar... e tentei perceber quais eram as suas intenções mas não conseguia pois ele ia respondendo às minhas jogadas como se tivesse certeza da vitória. Nas últimas jogadas eu já sabia que venceria mas, o padre parou, coçou o queixo, franziu os olhos e demorou mais do que o normal para responder a minha jogada e então fez a sua jogada fatal...a torcida aplaudiu e novamente caiu na gargalhada: “Aí, Neri, encontrou um parceiro à sua altura!”. Cumprimentei o padre: “ Parabéns, gostei de jogar com você, vamos jogar mais vezes e te pego, muito prazer, eu me chamo Neri! ”. E então, se levantou e estendeu-me mão: “O prazer foi meu, mas você tem que treinar mais, é muito esperto, eu me chamo Pe. Carlos Silva !" nos cumprimentamos e ele se retirou. Os amigos se aproximaram: “Não conhecia o Padre Silva?” – me perguntaram. “Não!”, ele joga muito bem !” – respondi. “Ele é o diretor do Seminário!” – respondeu um amigo – “é muito inteligente, entrou no seminário com apenas nove anos de idade!”. A partir daquele dia fui percebendo como eram os padres do Seminário. Cada um trazia uma personalidade marcante...e no Salão de Jogos, entre jogos e bate papo a gente se entrosava mais e adquiria confiança... O Pe. Pelaquim, jogava bem ping pong com suas pernas de Mané Garrincha e era um grande músico e teatrólogo... aprendi música e atuei em algumas peças teatrais sob a sua direção . O Pe. Carlos Felício mantinha-se mais nos bate papos e com ele aprendi a gostar de literatura e me indicou prá ser o cronista-mor do seminário. O Pe. Rodolfo me ajudou a gostar de geografia e a gostar de desenhar. Colocou-me como coordenador do Jornal “A Cartinha “ mas eu ainda não estava preparado prá isso...naquele tempo era impressa em tipografia. O Pe. Rodolfo desenhava os personagens e a partir daí era feito um clichê de cada desenho...um trabalhão. Cada padre dava o máximo de si mesmo para que tivéssemos aprendizagem: Quem não se lembra do Padre Pacheco? Do Padre Peixoto? Do Pe. Morelli? Do Padre Moacir?.... cada um na sua, desde as fabulosas aulas de física no laboratório, as aulas de inglês e francês pelo método Yasigi, as aulas de História Geral onde o Pe. Silva nos conduzia até o tempo dos Césares em Roma... Eram aulas com vida e paixão para ensinar... Só quem viveu esse tempo sabe o quanto ele significou... O Pe. Libardi e sua preocupação com a ditadura que naquele tempo fazia pressão sobre os seminários...(depois que saí, em 1975, tive dificuldade em adquirir meus documentos de reservista principalmente porque era ex-seminarista ) Percorri os quartéis de Bragança Paulista até Jundiaí no Gac e os comandantes sempre argumentavam: “Voces todos são comunistas, mas aqui vocês não mandam não, vamos te dar um chá de cadeira!”. Fiquei nesse empurra-empurra de um quartel para outro durante três anos. Os amigos também eram um caso a parte...as afinidades aproximavam-nos e dentre eles tive alguns novos em Aparecida... e com eles aprontávamos muito. Na próxima, tenho que narrar o que aprontei com o José Leonélio de Souza e de como ele se vingou com uma tacada de mestre, ou seja, de seminarista mais velho.Neri Pereira da Silva.
Caro Neri, que belas memórias. Passei por elas também....apenas não joguei damas com o Padre Silva. A propósito, mande-me a narrativa sobre o que "aprontou" com o José Leonélio de Souza, para publicar e guardar em nossas histórias de seminários! Obrigado e um forte abraço! Ierárdi(Tampinha-1957/1962)
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