quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Aprendendo ser misericordioso

Neri Pereira da Silva
Éramos em alguns que vivíamos sempre brincando, estudando e também aprontando juntos...José Silvio Sartori, Ubaldo Bergamim, Edson Gasparoto, José Inácio Medeiros e outros...havia no terreno abaixo  do seminário um grande bambuzal e no meio deste muitas trilhas muito bem cuidadas que sempre estávamos varrendo ou capinando prá manter sempre utilizável...essas trilhas davam num campinho de futebol e descendo ainda mais  terminavam no lago....Este lago estava vazio . Uma chuva  estourou a barragem. Os padres no entanto decidiram restaurar a barragem e, meses depois as águas voltaram a encher o bendito lago.
Após o almoço, tínhamos  sempre uma hora de descanso e as 13,15 hs o sino era badalado chamando-nos para a aula de religião. Aproveitávamos esse horário para passear pelas trilhas e consequentemente acabávamos  todos beirando o lago e foi  num desses passeios que  percebemos um pequeno barco de madeira boiando  próximo a margem. Digo pequeno, mas era minúsculo, cabendo nele apenas uma pessoa...estava ali paradinho balançando e tentador. Todos nos aproximamos e percebemos que havia água dentro, devia estar furado com certeza e após algumas averiguações confirmamos o fato. Era porém um buraquinho tão pequeno que ao ser esvaziado demoraria a encher novamente...
-” Quem tem a coragem de atravessar o lago remando com as mãos nesse barquinho? “ – alguém lançou o desafio. 
Alguns se apresentaram de imediato e coube a mim ser o primeiro de todos. Esvaziamos o barco e entrei ficando de joelhos dentro dele para poder remar com as mãos e iniciar a travessia. Empurraram-no  e iniciei a pequena aventura sob os alardes de 
-“ vai Neri, você consegue! “....
Sabia que se naufragasse eu poderia me safar facilmente pois sempre fui um exímio nadador...assim o barquinho impulsionado pelas remadas  das mãos foi se afastando da margem em direção ao centro do lago.
      Esquecemos no entanto que, agora havia um peso dentro dele  que apressava mais a entrada das águas pelo buraquinho e assim antes que chegasse ao centro do lago o barquinho já estava encharcado molhando minhas calças, sapatos enfim..voltar ou continuar?  Continuei e aos poucos  fomos sendo engolidos pelas águas...tive que terminar a travessia a nado...os  amigos  aproveitando a situação também pularam na água...mas eu estava de roupa e encharcado e o sino tocou lá no seminário chamando-nos prá aula de religião...e foi aí que caiu a ficha 
-“ e agora? Chegar ensopado? “ 
-“ O que dizer pro padre? “....
Os rapazes que não haviam entrado no lago foram subindo as trilhas na frente e nós os encharcados logo atrás...mas quando nos aproximamos do campo de futebol que havia abaixo do seminário percebemos que havia um padre na sacada do primeiro andar a nos observar de longe...nada menos do que o Padre Libardi...Os da frente apressaram os passos e nós continuamos com mais lerdeza sem olhar pro alto mas  o Padre foi logo perguntando: 
-“ Você esteve nadando no lago, Neri ?”. 
Eu, com a maior a cara de pau e molhado até os ossos respondi que 
-“ não padre, eu não estive não!”
  O Padre Libardi era um padre muito coerente, prá ele não havia meio termo, era sim sim ou não não. Não gostava de mentiras e sabia ser exigente quando era preciso ser exigente e essa postura assustava alguns...envolvia de corpo e alma nas brincadeiras entre os alunos, quantas vezes nos reunimos no gramado do jardim e tentamos em cinco ou seis  derrubá-lo ao chão...era forte e ágil e quando caía todos faziam festas pela façanha de ter derrubado o ‘ Libardão “.
  Na hora da oração da noite ele conduzia nosso exame de consciência sobre os ocorridos durante o dia ...e ajoelhado diante do Santíssimo  findávamos a oração  cada um refazendo ali seus compromissos de melhorar no outro dia...Nessa noite o Padre, antes de terminar disse:
-“Quero falar com todos aqueles que hoje após o almoço foram nadar no lago. Eu os espero em meu quarto!”. 
Todos sentiram um frio na barriga e os olhares se cruzaram  acusadores e cúmplices. Eles não foram interrogados pelo padre e não  mentiram mas eu fui questionado e havia mentido descaradamente . 
Melhor dizer a verdade sobre a mentira do que mentir sobre a verdade...serão alguns minutos de sermão mas esses minutos passam...melhor passar isso agora do que continuar amanhã sem ter coragem de olhar nos olhos do padre...Ao chegar no corredor já havia uma pequena fila aguardando para serem todos atendidos...fiquei por último...cada um que entrava saía de cabeça baixa...a barriga doía, as pernas estavam meio bambas até que chegou minha vez...enfiei a cabeça no vão da porta: 
-“ Boa noite padre!”.  
O Padre Libardi ao me ver ali, abriu os braços e me chamou: 
-“ Oh filho, entre, o que aconteceu? “ e me apertou contra o peito num abraço bem aconchegante e inesquecível. 
-“ Vocês poderiam ter morrido no lago, imagina nadar após a refeição! “...Eu não sou bravo não meu filho, só quero o bem de todos vocês, não precisa ter medo de mim.  A gente não se diverte juntos de vez em quando? Não faz mais isso não, é perigoso!” Promete? “
Aliviado e feliz prometi não mais mentir e fui dormir em paz. Estava gravado em meu coração o poder do perdão. Neri
Neri, bom dia. Estou gostando muito das suas recordações no tempo do Seminário. Vai dar um livro de memórias! Abraço.Dal Bó

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